O papel distributivo dos acordos coletivos

Dino Santos/ Agência Ágama/Sind. Químicos
O papel distributivo dos acordos coletivos
Nem sempre os empregadores entendem o valor de um acordo justo; campanhas dependem de pressão

Janeiro não é mês agradável quando o assunto é orçamento doméstico. Ainda mais quando se vem de um ano difícil, com crescimento menor e inflação preocupante. Mas um fator tem ajudado a, pelo menos, manter o jogo equilibrado: mesmo que o salário do brasileiro esteja longe de ser exuberante, os reajustes obtidos nos últimos anos e o aumento da renda foram determinantes para sustentar a economia. Campanhas salariais com índices acima da inflação correspondem a bilhões a mais em circulação.

Acordos de categorias profissionais numerosas, como bancários, metalúrgicos, químicos, petroleiros e trabalhadores nos Correios, que negociaram no segundo semestre de 2013, representaram um acréscimo de R$ 11 bilhões na economia. Segundo o Dieese, 2012 foi o melhor ano para negociações salariais desde o início da pesquisa sobre o tema, em 1996. A tendência é de que 2013 mostre resultados parecidos, embora com aumentos reais (acima da inflação) menores.

Evidentemente, nem tudo vai para o consumo. A operadora de produção Paula dos Santos Oliveira, 30 anos completados em dezembro, tem como prioridade pagar dívidas. “Sei que muita gente se programa para viajar, tirar férias, reformar casa, mas eu vou aproveitar a diferença que vem agora no final do ano para quitar as minhas dívidas”, conta Paula, que se mudou da Bahia para São Paulo em 2005. Mas pensa em voltar um dia – já comprou um “terreninho”, que precisa terminar de pagar.

Funcionária da indústria de plásticos Voss Automotive, em Piraporinha, bairro de Diadema, no ABC paulista, Paula teve reajuste de 8% e participação nos lucros ou resultados (PLR) de R$ 930. “Foi pouco, porque o nosso piso é baixo, mas é melhor pingar do que faltar”, diz a operária, contando com alguma sobrinha para compras. “Afinal, também sou filha de Deus”. Paula banca sozinha as despesas, incluindo as da filha de 11 anos. “O pai dela morreu, não recebo pensão, mas estou trabalhando, batalhando e estudando. Recebo bolsa para estudar Educação Física, e pelo menos esse gasto eu não tenho.”

Espaço para crescer
A renda do trabalho vem aumentando nos últimos anos. Pelos dados da pesquisa mensal da Fundação Seade e do Dieese em seis regiões metropolitanas e no Distrito Federal, por exemplo, a massa de rendimentos está próxima dos R$ 33 bilhões. Apenas três anos atrás, somava R$ 27 bilhões. Um acréscimo de R$ 6 bilhões, considerando o maior número de pessoas no mercado e o crescimento do salário.

Um período mais abrangente reforça esse quadro. Segundo o IBGE, em outubro de 2002 a massa de rendimentos habitual dos ocupados em seis regiões metropolitanas atingia aproximadamente R$ 16 bilhões. Em outubro deste ano, chegou a R$ 45 bilhões.

Mesmo os resultados recentes do Produto Interno Bruto (PIB), embora pouco animadores, mostram que o consumo das famílias continua sendo força determinante para a sustentação da economia. No terceiro trimestre de 2013, esse item teve crescimento de 2,3% sobre igual período do ano anterior – foi a 40ª variação positiva seguida. “Um dos fatores que contribuíram para este resultado foi o comportamento da massa salarial real, que teve elevação de 2,1% no terceiro trimestre de 2013”, informa o IBGE. Mesmo na comparação com o segundo bimestre, na qual o PIB recuou 0,5%, o consumo das famílias subiu 1%. O PIB no terceiro trimestre somou R$ 1,2 trilhão e o consumo das famílias, R$ 765 bilhões.

“A dinâmica de desenvolvimento está relacionada ao mercado interno”, observa o presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann. “Dentro dessa perspectiva, temos o consumo puxado pelos salários, em especial na base da dinâmica social”, acrescenta o economista, citando o aumento do salário mínimo e programas sociais. Ele lembra que a participação da renda do trabalho no total vem crescendo de 2003 para cá, e hoje está em torno de 45%. De 1995 a 2002, caiu de 48% para 42%. Já esteve acima de 50%. “Tem espaço para crescer.”

“Dois terços da nossa atividade são sustentados pelo mercado interno”, acrescenta o diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio. Ele destaca a importância de manutenção desse processo, até para a criação de postos de trabalho de melhor qualidade. Hoje, grande parte dos empregos criados é de baixa renda e tem duração menor, “um dos motivos que explica em parte o aumento do gasto com seguro-desemprego”. A rotatividade é um problema ainda sem solução. “Estamos no limite do que a gente pode chamar de uma certa estabilidade no emprego”, diz o economista.

Aí entra outro item importante do crescimento: o investimento. “Para que o investimento ocorra, é fundamental que se preserve o mercado interno. A demanda traz investimento para agregar valor, resultando em postos mais qualificados. Os serviços também poderão ser mais sofisticados. Essa é a dinâmica”, aponta Clemente. Em economês, investimentos são as aplicações necessárias para se melhorar a capacidade produtiva de um governo ou empresa. São, por exemplo, recursos empregados em melhoria e ampliação de estradas, portos, aeroportos, geracão de energia, em ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, qualificação de pessoal.

Falsa polêmica
Segundo o coordenador de análise da Fundação Seade (vinculada à Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional do Estado de São Paulo), Alexandre Loloian, os rendimentos em 2013 devem fechar um pouco abaixo do nível do ano anterior, mas acima de 2010 e 2011, assim como a massa salarial. “Uma coisa importante foi não ter perdido o volume nesses anos de relativa estabilidade. Não é à toa que a economia tem se sustentado.”

O rendimento médio dos ocupados em outubro nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE era de R$ 1.917. Dez anos antes, somava R$ 1.432. No mercado formal, medido pela Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, a remuneração média no final do ano passado era de R$ 2.080, ante R$ 1.356 em 2007.

Loloian vê uma falsa polêmica na discussão sobre crescimento pelo consumo ou pelo investimento. “Ambos têm de crescer”, afirma. “Mal comparando, é a bobagem de falar que o investimento está baixo porque o nível de poupança também está. Se não há atrativo para investir, os empresários não investem. Quais são os estímulos que a economia está oferecendo para os donos do dinheiro?”, questiona. “Essa contradição entre consumo e investimento é para o pensamento conservador.”

Para Loloian, ainda se consume pouco no Brasil devido ao juro “exorbitante”. Ele lamenta a interrupção do movimento do governo Dilma contra o sistema financeiro. “Quando o governo fez aquele movimento de redução da Selic, houve pequena redução para capital de giro e consumo. Reduziu muito pouco. E o jurou começou a voltar, naquela pressão rentista.”

Melhor distribuição
A analista de processos Vaniza Pinto, do Rio de Janeiro, tem mais tempo de trabalho no sistema financeiro do que a idade de sua filha mais velha, 36 anos a 30. Foi por nove anos bancária do extinto Nacional, trabalhou outros dois no extinto Banespa e está há 25 no Banco do Brasil – atualmente lotada na Previ, o fundo de previdência complementar dos funcionários. Esclarecida, acompanhou e sabe descrever em minúcias dificuldades enfrentadas em diferentes períodos da história do país e seus efeitos no mundo do trabalho, sobretudo em seu setor.

Entre o final dos anos 1970 e meados da década seguinte, ela lembra que os trabalhadores, no geral, tinham muitas dificuldades para negociar seus acordos coletivos: “Sofríamos as restrições de um regime ditatorial que dificultava as reivindicações e, ao mesmo tempo, o ambiente era de crise e arrocho. Tudo era muito difícil”. Em seguida, recorda, veio uma temporada de pacotes e planos econômicos, a pretexto de tentar conter a inflação. “Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor... cada vez que os governos baixavam um pacote mirabolante os salários sofriam perdas enormes. A corda sempre arrebentava para nosso lado”, conta Vaniza. “Depois veio o Plano Real, em 1994, que segurou a inflação, e nós que pagamos pela tal estabilização da moeda. Na época eu já estava no BB e ficamos oito anos sem reajuste. Começamos a usar a modesta PLR, que surgiu logo depois, para compensar parte do sufoco provocado pelo salário congelado.”

Vaniza assinala que a partir de 2003 os acordos começaram a assumir um conceito mais próximo do que considera adequado. “Passamos a conviver com pelo menos três aspectos que devem sempre compor o valor do nosso trabalho: a reposição da inflação, o aumento por produtividade e a remuneração baseada nos resultados e na lucratividade, a dita PLR”, defende. “Nós não empreendemos, não somos empresários, a gente vende a força do nosso trabalho. Então, cada ponto percentual que a gente consegue numa campanha salarial, cada real a mais de PLR, é um recurso a mais apropriado por quem trabalha, que é quem carrega o piano. Tanto o reajuste como a participação poderiam ser maiores e mais justos, mas pelo menos já estamos numa lógica mais correta.”

A bancária, no entanto, garante que em todos esses anos de batente seu forte nunca foi acumular bens materiais. “Até hoje não comprei uma casa. Tudo o que ganho, invisto na educação e na formação das minhas filhas, uma de 30 anos e as gêmeas de 22, duas formadas e uma estudando, todas em universidade pública.” Em seu segundo casamento, Vaniza convive ainda com sete enteados, de 9 a 31 anos, e dois netos. “Para tudo, o raciocínio é o mesmo: investir em qualidade de vida, garantir boa educação e saúde, que aliás deveriam ser obrigação do Estado. Mas isso são outros quinhentos.”

Um entra, outro sai
O emprego cresce de forma ininterrupta há dez anos, com menor vigor no período recente. No mercado formal, os mais de 47 milhões de trabalhadores no final de 2012 (conforme dados da Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Emprego) representam quase o dobro do contingente de meados dos anos 1990. Mas uma questão ainda desafia a formação de uma força de trabalho mais qualificada e bem remunerada: o entra-e-sai de pessoas, todos os meses, no mercado.

Os dados mensais colhidos para o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), também do ministério, dá uma ideia do tamanho da rotatividade de mão de obra no Brasil. De janeiro a outubro deste ano, 19,1 milhões de trabalhadores foram contratados sob o regime da CLT (com carteira assinada). No mesmo período, as empresas demitiram 17,4 milhões.

A rotatividade tem um efeito “perverso” para o trabalhador, aponta o Dieese. Estudo sobre o setor da construção civil, por exemplo, mostra crescimento do salário médio, mas lembra que o maior volume de contratações ocorre em faixas de menor rendimento. De 2011 para 2012, o emprego só cresce para remunerações de até dois salários mínimos. “A despeito da exigência de maior escolaridade, o rendimento no setor ainda permanece muito baixo”, observa o instituto. O salário médio de admissão, no ano passado, foi de R$ 1.099,75, enquanto os demitidos ganhavam R$ 1.175,18.

Isso é rotina também no setor financeiro. Segundo a Contraf, confederação nacional dos bancários, nos primeiros dez meses deste ano foram contratados 33.683 trabalhadores, com salário médio de R$ 2.943,95. No mesmo período, saíram 36.294 funcionários, que ganhavam R$ 4.655,70 – a diferença entre a remuneração dos que saíram e dos que entraram é de -36,8%.

Fonte: Rede Brasil Atual

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