Internacional: A crise armada no Mali: da Primavera Bérbere ao Outono Islâmico

O temor não é mais o de uma nova Primavera Bérbere, mas de um levante islâmico na região do Magreb que coloque a segurança internacional em risco
 Por Raphael Tsavkko Garcia

 O que começou como um movimento de libertação nacional da minoria Bérbere no norte do Mali e a posterior formação do Estado de Azawad acabou como uma queda de braços entre a França, com aval da ONU e do governo malinês, e grupos islâmicos radicais, como o Ansar Dine e o Movimento pela Unidade e pela Jihad, da África Ocidental (Mujao), e a Al Qaeda do Magreb, todos ligados à Al Qaeda.

Por detrás da queda de braço, interesses étnicos, religiosos e financeiros.

De um lado tribos bérberes organizadas no MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) e seus ex-aliados pontuais ligados à Al Qaeda, e do outro os interesses comerciais franceses e internacionais em uma região rica em minerais como urânio disfarçados por preocupação humanitária.

Os Bérberes encontram-se espalhados por diversos países do norte da África, sendo os Curdos daquele continente, ou seja, uma população de tamanho considerável, sem Estado, e espalhada por diversos outros Estados onde, em muitos casos, é tratada como inferior, tem sua língua proibida ou sua veiculação dificultada.

No Mali, os Tuaregues, ramo local do povo Bérbere, já ensaiaram dezenas de revoltas contra o governo central malinês com maior ou menor sucesso e buscam a formação de um Estado que abarque todos os Tuaregues em países vizinhos. Parece que não foi desta vez.

Fortalecidos por armamento vindo da Líbia e com soldados treinados por Khaddafi, o MNLA pôde pela primeira vez realmente impor perigo real ao governo malinês.

Após um golpe de Estado no Mali, em 21 de março de 2012, cerca de 3 mil rebeldes do MNLA tomaram de assalto as três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais do norte do Mali – em meio à completa fragilidade do governo central e declararam sua independência.

O Mali vinha passando há meses por um processo de deterioração de suas instituições, seguido por um golpe de Estado e pela imposição de um governo de transição que buscava agregar diferentes posições políticas e foi surpreendido por mais uma revolta Bérbere, desta vez bem sucedida - ao menos temporariamente.

A vizinha Argélia também enfrenta dificuldades no combate tanto aos Tuaregues quanto à minoria Cabile, também de origem bérbere, na região do Mediterrâneo. Desde 1980 e da chamada Primavera Bérbere (que tomou nova força a partir de 2011 junto à Primavera Árabe na vizinha Tunísia) e da Primavera Negra de 2001 (quando perto de uma centena de Béberes Cabiles foram assassinados e milhares ficaram feridos ou mutilados em ações violentas do governo argelino contra manifestações por autonomia em um cenário de revoltas populares locais) lutam por maior reconhecimento de sua língua e cultura no país usando métodos pacíficos de manifestação, que muitas vezes são reprimidas com violência.

Já em abril de 2012 o MNLA e demais grupos islâmicos "aliados" controlavam virtualmente todo o norte do Mali, porém tensões entre estes grupos acabaram por decretar a derrota do MNLA e a perda das principais cidades conquistadas.

Para tanto, o MNLA contou com o apoio de grupos islâmicos radicais, mais interessados na formação de um califado fundamentalista do que em uma pátria para os Bérberes que, em geral, tendem para o laicismo ou para um islamismo moderado.

Financiados muito provavelmente pela Arábia Saudita e por poderosos do Golfo Pérsico, os grupos islâmicos ligados à Al Qaeda buscam se apoderar de uma região que tradicionalmente professou e professa um islamismo moderado, de escola jurídica Malikita e onde o Sufismo, vertente mística e não-radical, impera.

Monumentos Sufis e tumbas de importantes líderes da corrente foram destruídos pelos radicais.

Contra diversos prognósticos, o MNLA foi derrotado por seus aliados pontuais e o sonho de um Azawad livre se tornou mais difícil, mas não o sonho dos islamitas radicais de controlar a região e buscar, por fim, o controle de todo o Mali e de usar este território como base para ataques aos países vizinhos.

Ainda é difícil compreender completamente o que levou o MNLA à derrota em tão pouco tempo, especialmente quando consideramos sua maioria numérica e mesmo superioridade em termos de equipamentos bélicos, mas o fato é que foram virtualmente neutralizados e expulsos das principais cidades conquistadas.

É possível apontar, ao menos em algumas cidades, para a fragilidade do controle do MNLA que não apenas tinha de manter controlados os islâmicos radicais como combater outros grupos locais ligados à etnias minoritárias ou mesmo majoritárias localmente.

Conflitos ainda acontecem em cidades do norte, onde se enfrentam grupos islamitas que agora se opõem a um Estado Bérbere (preferindo a conquista de todo o Mali e a fundação de um Estado islâmico onde impere a Sharia) e o MNLA enfraquecido. O MNLA ainda tem de enfrentar a resistência da população em cidades como Gao, onde a maioria da população pertence a minorias africanas, como Fulas e Songais, que contam com sua própria milícia, e Ganda Iso.

De uma Primavera Bérbere, aos moldes da Primavera Árabe que varreu o Oriente Médio e o norte da África em 2012 e aos moldes dos movimentos autonomistas Cabiles, a situação passou a ser um Inverno Islâmico e um pesadelo real para a França, antiga metrópole que conta com a presença de 2.500 soldados no país e parece ser a única esperança do governo central malinês e de sua população na resistência ao fundamentalismo - mas cujo apoio não virá de graça em uma região rica em minérios.

Esta esperança, porém, sepulta os sonhos da população Bérbere do norte.

O fato é que a ONU busca intervir na região e conta com o apoio do exército francês e do apoio logístico do Reino Unido e da Alemanha. O Conselho de Segurança das Nações Unidas já deu sua permissão para uma ação francesa na região, apesar da discordância pontual dos EUA, que preferia uma ação comandada pela CEDEAO/ECOWAS (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), possivelmente para poder depois negociar melhores contratos de exploração dos minérios locais sem ter de passar pela França.

É preciso ainda recordar que originalmente o MNLA encontrou forças e armamento para derrotar o exército malinês no norte do país devido à intervenção dos EUA na Líbia, que conta também com significativa minoria Bérbere (Tuaregues e outros) que integrava, dentre outras, as forças de elite do exército de Khaddafi.

A situação, ao menos do ponto de vista diplomático, parece mais simples do que a situação, por exemplo, da Líbia e da Síria, onde existia resistência a uma intervenção, no caso da Líbia, e onde ainda existe muita confusão sobre os diversos grupos que se degladiam, no caso da Síria, e cujo governo ainda conta com apoio da Rússia e da China, tornando uma decisão na ONU difícil.

No caso do Mali, nem os islâmicos radicais ligados à Al Qaeda nem os rebeldes Bérberes contam com apoio internacional, ao menos não declarado - ainda que seja provável o apoio de radicais e milionários sauditas aos guerrilheiros islâmicos. Uma intervenção militar estrangeira torna-se portanto, factível, apesar do pouco interesse que o governo francês ou qualquer outro possa ter em ir para a linha de frente em uma batalha que pode custar vidas e trazer perdas políticas em casa.

Apenas os minérios e a possibilidade de contratos vantajosos - a região do norte do Mali, Azawad, é rica em minérios - justificam uma intervenção, assim como, em menor parte, o temor do fortalecimento de guerrilhas islâmicas na região do Magreb, que poderia causar impactos em todo o norte da África

O líder do Mujao, Abou Dardar, chegou a ameaçar atacar "o coração da França" caso o país mantenha sua cooperação militar com o Mali no combate às milícias islâmicas. Em Paris, o nível de alerta terrorista foi elevado e a segurança de pontos turísticos e de interesse reforçada.

Por outro lado, lideranças no MNLA ofereceram-se para ajudar a França a derrotar os islâmicos, mas não se sabe qual é o preço de sua ajuda e, tampouco, se estão dispostos a abrir mão de sua independência efêmera (que durou apenas de abril a junho de 2012) para receber ajuda externa no combate aos islâmicos. De fato, é complicado saber se o MNLA receberá ou oferecerá ajuda nesta questão, tudo depende de complicados arranjos políticos.

Enquanto a situação do Mali piora, militantes islâmicos impõem a Sharia pelo norte do país e já há casos reportados de penas de amputação aplicadas a criminosos e penas a quem insiste em ouvir música ou mesmo a quem utiliza toques de celular considerados "não islâmicos".

Na vizinha Argélia, centenas de estrangeiros foram feitos reféns por um grupo islâmico solidário aos radicais islâmicos malineses, possivelmente o braço da Al Qaeda no país, e vários foram mortos após a intervenção do exército do país. Outros ataques de milícias islâmicas solidárias não podem ser descartados.

Quando da tomada de poder por parte dos Bérberes do MNLA e a fundação do Estado de Azawad, o temor era do espalhamento do conflito com a adesão de grupos Bérberes de países vizinhos.

Hoje, o temor não é mais o de uma nova Primavera Bérbere, mas de um levante islâmico na região do Magreb que coloque a segurança internacional em risco.

 

*Raphael Tsavkko Garcia é graduado em Relações Internacionais (PUCSP) e mestre em Comunicação (Cásper Líbero).


Fonte: Brasil de Fato

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