“Estamos devendo muito ao povo brasileiro”

“Estamos devendo muito ao povo brasileiro”


Desde quando criticou as “más com­panhias” que teriam levado o PT a enve­redar pelos caminhos ortodoxos da po­lítica, Olívio Dutra vem sendo uma das vozes internas críticas ao processo de inflexão conservadora do próprio parti­do. Fundador do partido, primeiro prefeito petista em Porto Alegre, governa­dor do Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002 e ministro das Cidades no primei­ro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Olívio Dutra faz um ba­lanço realista dos dez anos de PT no go­verno federal.

 “Não mexemos na estrutura deste Es­tado, que continua sendo uma cidade­la dos grandes interesses econômicos e culturais”, afirma. Em entrevista ao Brasil de Fato, Olívio, que esteve pre­sente no lançamento do jornal durante o Fórum Social Mundial em janeiro de 2003, em Porto Alegre, reconhece os limites da gestão petista, que começou naquele mesmo mês. “Temos uma gran­de dívida pela frente, mesmo que tenha­mos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de mi­lhões de brasileiros“, reconhece, defen­dendo que o partido e a esquerda reto­mem o debate sobre as transformações necessárias na sociedade brasileira.

Além de um balanço dos últimos dez anos, o ex-governador gaúcho apontou os limites da experiência petista, os de­safios da esquerda e não deixou de refor­çar sua posição sobre a postura do parti­do em relação ao “mensalão”: “O PT ja­mais poderia ter feito isso mas pode, da­qui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação”.

 Brasil de Fato – O Brasil de Fato foi lançado em janeiro de 2003, logo após a posse de Lula, durante o Fórum Social Mundial. O primeiro número do jornal trazia uma entrevista com o economista Celso Furtado e a manchete: “É preciso coragem para mudar o Brasil”. Passados dez anos do projeto do PT no poder, houve necessária coragem para as mudanças profundas no Brasil?

Olívio Dutra – Lembro de um cidadão da Bossoroca (cidade gaúcha das Mis­sões, terra natal de Olívio) que tinha 90 e tantos anos e dizia: “Coragem não me falta, me falta ar”. Não faltou coragem nos dois mandatos do Lula e neste que está se desenrolando com a Dilma. Mas é bem verdade que não rompemos com conjunturas adversas. Acabamos con­temporizando sob a alegação da gover­nabilidade, tendo que construir uma maioria não programática no Congres­so, tanto no primeiro quanto no segun­do governo do Lula, e até mesmo ago­ra. Mesmo havendo coragem para en­frentar os desafios de um país tão gran­de e com desigualdades imensas, esta maioria não programática sempre pu­xou para baixo a execução de um pro-grama que enfrentasse com radicalida­de situações de desigualdade que pe­nalizam milhões de brasileiros. Então, penso que coragem não faltou.

E políti­ca evidentemente se faz com coragem, mas também com clareza dos objeti­vos. Por isso, penso que ainda há mui­to o que fazer. Estamos devendo muito ao povo brasileiro, mesmo que tenha­mos conquistados direitos sociais, me­lhor distribuição da renda, oportunida­de de emprego e trabalho regular. Mas não fizemos, por exemplo, a reforma agrária com a radicalidade necessária. Com a maioria que constituímos, não fizemos nenhuma das reformas funda­mentais do Estado. Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenha­mos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros.

Como o senhor mesmo diz, apesar dos avanços nas áreas econômica e social, os governos Lula e Dilma não enfrentaram questões estruturais. Foi por causa da governabilidade ou o projeto do PT no poder acabou sendo não enfrentar estes temas?

Sou um dos fundadores do PT e até hoje não vi nenhuma instância do par­tido se decidir por um projeto que fi­que estacionário ou que se condicione às conjunturas. Se isso está andando, é por conta de alguns setores que estão se contemplando com o que já se conquis­tou. Se pensamos que dialogar com am­plos setores da sociedade brasileira é suficiente, que isso abre espaços e reduz pressões, o projeto vai ficando, na sua realização, cada vez mais longe. O ho­rizonte vai ficando mais distante. E isso sem ter tido uma discussão.

Qual é o papel de um partido de esquerda e do so­cialismo democrático em sendo governo e tendo representação política para en­frentar um Estado que não é o que aco­lhe um projeto de transformação social? Não mexemos na estrutura deste Es­tado, que continua sendo uma cidade­la dos grandes interesses econômicos e culturais. As elites se sentem muito con­trariadas em terem tido a fraqueza de deixar o povo brasileiro eleger um me­talúrgico para a Presidência da Repúbli­ca, e agora uma mulher que vem de uma luta que não é a luta que eles sempre pa­trocinaram. Mas isso não os impede de continuar tendo poder. Porque poder não é apenas estar no governo. O prota­gonismo do povo brasileiro ainda preci­sa ser estimulado, provocado. Nós che­gamos no governo e de certa forma con­temporizamos com as coisas.

Os movi­mentos sociais têm presença nos conse­lhos aqui e acolá, mas isso garante força para os movimentos sociais e mobiliza­ção ampla que um governo de transfor­mação precisa ter na base da sociedade para poder avançar? Isso não temos res­pondido como partido. Aliás, qual o pro­jeto que a esquerda brasileira tem para o país, não apenas para ganhar eleições? Como a esquerda vê o Brasil e a possibi­lidade de transformá-lo? E estabelecer entre si compromissos e poder alternar­se por dentro da esquerda, e não a es­querda disputar esta ou aquela eleição e depois ter que fazer negociações em que o seu projeto se estilhaça e o horizon­te da transformação fica cada vez mais distante.

O PT é o maior partido de es­querda do país e não nasceu de gabine­tes, mas está cada vez mais dependente destes nichos de poder dentro de um Es­tado que está longe de ter esse controle público e popular efetivo. E estamos ge­rindo esse Estado. É uma discussão sé­ria que precisamos nos debruçar sobre ela. O PT tem que fazer a obrigação de fazer isso. Não esgotou este projeto na medida em que não se tornar um parti­do da acomodação e se mantiver como partido da transformação.

O senhor defende a necessidade de a esquerda, não só o PT, discutir o que quer para o Brasil.

O PT aceitou o jogo democrático, mas a democracia não é estática, é um pro­cesso. Temos que estabelecer formas de ir desmontando a lógica do Estado que funciona bem para poucos e mal para a maioria. Temos que discutir como agir por dentro do Estado, em um processo democrático, mas não perdendo o obje­tivo estratégico de ganhar força na base da sociedade, semear transformações. Não temos que sair com um tijolo em cada mão, ou dando murro em ponta de faca, mas temos que ter consciência que o partido tem de ser uma escola política. Pode haver uma alternância entre as fi­guras dos diferentes partidos de esquer­da, desde que haja um compromisso de sequência do projeto de transforma­ção, e não de acomodação. Nosso parti­do tem que tirar lições dos governos que já exercemos, mas não ficar se autoelo­giando e nem se remoendo. Há uma rea­lidade a ser enfrentada. E é preciso ter povo mobilizado constantemente, não como massa de manobra, mas para for-mar uma base de sustentação. 

O senhor acredita que ainda haja espaço para isso no PT? O senhor e outros dirigentes vêm defendo uma retomada de velhas tradições do PT, mas não é ilusório imaginar que o partido voltar a ser algo que já não é mais?

Eu não prego este retorno, mas tam­bém afirmo que, sem raízes, uma árvore não tem tronco com seiva sufi ciente pa­ra sustentar a galharia lá em cima. E es­sas raízes são as lutas sociais e popula­res, de um período histórico importante do país, no qual se originou esse ambien­te de fundação do PT. A conjuntura mun­dial é desafiadora. Vamos buscar apenas nos adaptar? Não é uma oportunidade de darmos um salto? O PT tem que debater isso.

As instâncias partidárias afrouxa­ram-se de tal maneira que inclusive tive­mos pessoas importantes do PT que co­meteram políticas que não se diferen­ciam das políticas tradicionais que sem­pre condenamos, sob alegação da gover­nabilidade e essas coisas todas. Isso não pode ser culpa apenas desta ou daque­la figura, mas as estruturas partidárias não estavam suficientemente atentas ou atuantes, e se criaram essas situações em que as pessoas pensavam que podiam fa­zer ou desfazer coisas que depois se jus­tificariam pelos objetivos. E isso levou a essa situação que estamos sofrendo, que é a Ação Penal 470, o chamado mensa­lão, que não pode ser o objetivo do nosso debate ficar remoendo, acusando aqui ou ali, mas se superando.

Achar que pode­mos comprar e vender opinião, comprar e vender posições, comprar e vender vo­tos, isso é o pior da política, que tem des­graçado o povo brasileiro e desqualifica­do as instituições políticas. O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação.

Apesar das críticas ao julgamento do mensalão, o governador gaúcho Tarso Genro vem afirmando em artigos que o partido deve mudar de agenda. É o que o senhor está dizendo também?

O partido não deve ficar se justificando, mas não deve também colocar a ca­beça no chão como avestruz. Tem que assumir que houve erros de conduta po­lítica. Não é condenar Fulano ou Bel­trano, mas assumir que em uma situa­ção tal, as instâncias do partido não fo­ram capazes de não se deixar aprovar por condutas assim. E ir adiante, evi­dentemente. Penso que a política para nós tem que ser a construção do bem comum, com protagonismo das pesso­as. O Estado, para funcionar bem, tem que estar sob controle público efetivo. Esse é um objetivo, colocar o Estado sob controle da sociedade. E para isso é pre­ciso ter espaço para os movimentos so­ciais, instigá-los dentro da sua autono­mia. Um governo tem limites para exe­cutar coisas, mas não pode submeter os movimentos sociais a esses limites que tem na institucionalidade.

O Brasil de Fato foi lançado durante o Fórum Social Mundial. O balanço que o senhor faz do FSM e das coisas que aconteceram no Brasil e na América Latina nestes dez anos é otimista ou pessimista?

É realista. Há avanços importantes, que não fossem as edições do FSM não teriam acontecido. Agora, há coisas que poderiam ter ido mais longe. O FSM também não pode ficar atrelado e depen­dente de governos, mesmo que sejam go­vernos sérios e comprometidos com as lutas sociais. O Fórum tem que ter for-mas de fazer com que suas deliberações ecoem nas instâncias supranacionais, nos organismos internacionais. O fato de o FSM ter perdido um pouco do foco, porque se mundializou, passou a aconte­cer em diferentes locais e depois ter en­contros maiores, continentais, para de­pois ter um encontro global, tem que ser revisto, para não se perder.

E qual o balanço realista que o senhor faz da imprensa alternativa brasileira neste período?

Cresceu muito, eu penso. Temos mui­tos veículos alternativos, mas qual é o conteúdo, o que estão provocando? Pen-so que esse florescimento de uma im­prensa alternativa é um caminho im­portante para enfrentar os grandes gru­pos econômicos que lidam com a infor­mação. É preciso ter uma miríade de fon­tes alternativas de informação e comuni­cação. Mas precisam ter uma visão, não é cada uma no seu território, na sua ca­tegoria, é preciso ter uma visão de como as coisas se relacionam, se interligam. E isso também é papel dos partidos polí­ticos, instigar essas relações e a qualifi­cação da intervenção. Temos um gover­no com problemas sérios na relação com os grandes grupos econômicos e a gran­de mídia.

A grande mídia se alimenta das contas de publicidade do governo e das empresas públicas. Enquanto isso, pa­ra jornais e veículos alternativos sobram migalhas. São questões políticas e preci­sam ser encaradas. Isto é uma dívida que ainda não saldamos.


Fonte: Daniel Cassol - Brasil de Fato

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