Arriscamos nossas vidas pela democracia: Nicaraguenses denunciam repressão do governo Ortega
Ao sair da Nicarágua, Yader Parajón, Carolina Hernández e Ariana Mcguire tiveram seus rostos e nomes divulgados na televisão nacional. “Já nos tem plenamente identificados”, afirma Ariana. Ela fala sobre o perigo de morte iminente ao retornar. “Podemos voltar e entrar pelo aeroporto, mas possivelmente vão nos esperar com as forças policiais e nos colocar em uma prisão ilegal de detenção e tortura, ou prender-nos por 20 anos, pois, para eles, somos terroristas.”
Os três são representantes de movimentos sociais nicaraguenses. Com a intenção de denunciar as repressões sofridas desde o início do governo do presidente Daniel Ortega – intensificadas em abril deste ano – eles integram a Caravana da Solidariedade pela Nicarágua, que já percorreu Argentina, Uruguai e Chile e, agora, chega ao Brasil. A viagem é apoiada pelo Coletivo de Nicaraguenses no Brasil, que organizaram uma campanha de crowdfunding para financiar os eventos.
Ortega foi eleito em 2007 e está em seu terceiro mandato consecutivo. Em 2018, a Nicarágua comemora 39 anos desde que a Revolução Sandinista pôs fim a décadas de ditadura – e da qual o presidente era celebrado como herói. No entanto, nos últimos anos, Ortega veio perdendo o posto de revolucionário idolatrado. Em vez disso, tem sido comparado aos Somozas, a dinastia de ditadores que ele ajudou a derrubar nos anos 1970, quando era um guerrilheiro sandinista.
“Recebemos e escutamos estes jovens, justamente porque defendemos os ideais sandinistas, como manifestado na origem de seu movimento, caracterizado como luta contra a exploração humana. […] Lamentavelmente, o regime “Orteguista” há muito tempo se deslocou destes ideias sandinistas e, ironicamente, tem sido o grande promotor da mesma política neoliberal norte-americana que, em seus discursos, alega combater”, aponta o Comitê Gaúcho de Solidariedade com a Nicarágua, em nota disponibilizada durante um dos eventos organizados por conta da vinda da comissão.
De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), 322 pessoas morreram em quatro meses de protestos contra o governo de Ortega, das quais 21 eram policiais e, 23, crianças e adolescentes. No entanto, conforme explica Carolina, as dificuldades de comunicação impostas pelo governo podem provocar uma distorção nos números. “A maior parte dos meios de comunicação pertencem ao governo e os únicos três veículos independentes foram censurados”.
No dia 18 de abril, uma reação de estudantes universitários marcou o início das repressões mais violentas. Propondo uma reforma na previdência, o governo Ortega pretendia incrementar as contribuições de empregados e empresas para o Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS), além de reduzir em 5% as pensões dos aposentados.
Somado a isto, veio a insatisfação com a ‘dinastia Ortega’, composta por sua esposa, Rosario Murillo, como vice-presidente, com as reformas eleitorais e com as políticas de entrega do patrimônio nicaraguense a outros países. “Uma vez que saia Ortega, o Estado estará quebrado. 50 mil pessoas já saíram do país e outras 30 mil aguardam asilo político. O Banco Central foi saqueado. A Nicarágua não tem mais instituições. […] Por isso, temos que lutar para que esse regime caia, por uma nova Constituição e por eleições democráticas”, resume Ariana.
Yader e o movimento estudantil
No dia 18 de abril de 2018, Yader Parajón Gutiérrez entregava água e comida para os estudantes que ocuparam a UPOLI (Universidade Politécnica) junto com sua família. Yader conta vir de uma família com envolvimento político, que se posiciona contra o governo Ortega desde que as contestações sobre a validade de sua eleição foram iniciadas. Em seu bairro, foi montada uma operação de arrecadação de mantimentos para os universitários.
Ele costumava fazer as entregas com seu irmão, Jimmy. No dia 10 de maio, no entanto, seu pai pediu que apenas um dos filhos fizesse o trajeto até a UPOLI. “Minha mãe havia falecido seis meses antes. Ele percebeu que a violência estava aumentando e ficou com medo. Com razão.”
Yader ficou em casa. Por um grupo no Whatsapp, monitorava o caminho do irmão. Por volta das 21h30, a Universidade sofreu o primeiro ataque das forças paramilitares. Dois estudantes morreram. Algumas horas depois, o segundo ataque aconteceu, com um efetivo maior. Seu irmão foi morto com um tiro no peito, que acertou seu coração e parte do pulmão esquerdo. Ele foi atendido em uma instalação improvisada na UPOLI e levado para um hospital a 40 minutos do local ainda com vida. Porém, não resistiu.
Yader baixa a cabeça. “Houve uma ordem do governo para que os feridos em protestos não fossem atendidos por médicos. Muitos morreram.”
Por isso, a família de Yader se uniu a outras que lutam pela memória dos estudantes mortos. Chamado Madres de Abril, o movimento pede justiça para os filhos, filhas, esposos, irmãos, pais e mães vítimas do regime. “Nos posicionarmos custou a vida do meu irmão, e essa morte não pode ser em vão”, conclui Yader.
Carolina e a luta das comunidades mineradoras
“Temos o direito a uma pátria livre. Estão nos assassinando porque estamos nos manifestando. Não temos armas, a nossa arma é a nossa voz. Ortega rouba nosso direito à vida”. Assim resume Carolina Hernández Ramírez, quando perguntada sobre a situação em seu país natal, a Nicarágua. Carolina pertence à comunidade Santa Cruz de la India, cuja principal atividade econômica é a mineração artesanal.
Há dois anos, juntou-se ao movimento pela defesa do seu território e de outras quatro comunidades, historicamente exploradas pelo extrativismo. Em abril de 2018, com a reação dos estudantes universitários às reformas do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS), ela organizou, junto a sua comunidade, uma manifestação de apoio aos aposentados, e com os primeiros assassinatos em Manágua, construíram barricadas no local. “Entregaram nossa soberania. Nas últimas duas semanas, entregaram três concessões de mineração de ouro para empresas estrangeiras. Não nos permitem decidir, não permitem que nos manifestemos.”
Carolina conta que sua comunidade já se mobiliza há pelo menos cinco anos contra as decisões do atual governo. “A diferença é que agora nos matam”. Ela conta que, durante protestos contra minas a céu aberto, houve repressão intensa, com mortes entre os manifestantes e a prisão de alguns dos líderes do movimento por 40 dias. “Dizem que somos vinculados à CIA (Central Intelligence Agency), à direita norte-americana… Somos pessoas. Somos cidadãos que estão pedindo por direitos básicos”.
Ariana e a vida das mulheres nicaraguenses
“Um dia, apareceram pessoas encapuzadas, treinadas, com armas e munição”, descreve Ariana McGuire Villalta quando perguntada sobre a repressão das forças paramilitares. À essa organização de choque, o governo Ortega deu o nome de ‘Juventude Sandinista”. “Sete líderes estudantis estão detidos, nesse momento”, Ariana lembra, ao iniciar sua fala. “Provavelmente, sendo torturados. Foram enquadrados na nova lei antiterrorismo”, descreve. Os jovens em questão foram presos por participarem de uma passeata em Granada, a mesma onde a cineasta brasileira Emilia Mello foi detida e, depois, deportada.
Ariana é ativista feminista e, há oito anos, participa de protestos cívicos e sociais; especialmente das manifestações de grupos de mulheres contra a violência. Ela lembra das acusações em torno de Ortega – envolvendo pedofilia e abuso sexual. “Nós, enquanto mulheres, não podemos permitir sermos governadas por uma figura machista, que estende toda sua influência pela sociedade por meio de um governo terrorista que controla o Legislativo e o Judiciário.”
Ela também pede pelo fim dos estereótipos da participação política das mulheres no país. “As feministas têm que trabalhar em um confronto com este modelo político e pela unidade de todos os movimentos sociais na Nicarágua. Temos que lutar pelo fim dos paramilitares, pelo fim dos assassinatos e para que voltemos à uma condição democrática”.
A programação completa da passagem da caravana por Porto Alegre pode ser conferida aqui.
Fonte: Sul 21