Previdência, Privatizações e Política Comercial de Bolsonaro não solucionarão crise
Os três ‘Ps’ propostos pela equipe econômica do novo governo podem ser foco de tensão e conflitos na gestão de Bolsonaro
O assanhamento de Jair Bolsonaro e de seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes em “mexer com tudo que está aí”, em se afirmarem como o “novo”, a “mudança” e em representarem “um elemento anti-sistema” deve ter a Previdência Social, a Privatização de empresas estatais e a Política Comercial – os três Ps - como alguns de seus principais alvos.
A se julgar pelos meses que antecedem o início da gestão Bolsonaro-Guedes - que já governam o país de certa forma, seja pela agenda da transição, seja por definirem os atos e debates de fato -, os três Ps podem representar não apenas a galinha dos ovos de ouro da nova gestão – mas também um foco importante de tensões e conflitos. No plano interno e externo. Nacional e internacional.
O especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental Paulo Kliass considera que “a agenda da privatização é uma agenda do passado” e que “voltar a ela é um enorme retrocesso. Isso cria contradições, inclusive dentro desse próprio governo”.
Sobre Paulo Guedes, Kliass afirma que “ele é muito bem informado desse ponto de vista, que é uma visão conservadora que tem uma ideia que o Estado tem que ser mínimo, o estado tem que gastar muito pouco - e principalmente o Estado não pode ter nenhuma intervenção do domínio econômico”. Resumidamente “para esse povo, uma empresa estatal é a aberração das aberrações. Ela tem que ser destruída ou privatizada”.
Kliass ressalta que, embora a privatização tenha voltado à agenda, ela se encontra atualmente em compasso de espera. E que o mercado não vai querer ficar com o “osso”, mas sim com “o filé mignon”. O osso ficará com quem então? Logicamente, com o Estado. No cenário atual de crise da nossa economia, a venda das empresas tão pouco vai resolver ou mesmo melhorar o quadro da dívida pública, pois as empresas serão vendidas “a preço de banana”.
Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp avalia que “o tema das privatizações não é um tema fácil também, não é uma agenda fácil de ser enfrentada. Para ele, “boa parte do projeto que está na cabeça do Paulo Guedes não vai se realizar. É o caso, por exemplo da privatização das universidades”.
Rossi qualifica o discurso do futuro ministro da Fazenda de Bolsonaro como “absolutamente radical e inviável”. O docente da Unicamp acrescenta que Guedes se vale de “um discurso extremamente ortodoxo e fundamentalista, em torno da privatização generalizada da máquina pública brasileira” e que “isso não é viável” nem irá “acontecer da maneira que ele propõe”.
A exemplo de seu colega, Rossi registra que, dentro do próprio governo de Bolsonaro há contradições em torno do tema, que já levaram a alguns recuos nessa área. “Há uma ala dos militares que é contrária às grandes privatizações, como a privatização da Petrobras e da Eletrobras”. Rossi ressalta que privatizar uma empresa desse porte e importância estratégica “é também um problema de soberania nacional”.
“Não vejo nenhuma privatização de um grande grupo nacional para uma outra empresa” brasileira, alerta João Sicsú, professor do Instituto de Economia da UFRJ. A privatização, portanto, acaba por representar “sinônimo de desnacionalização”. Com isso fecha-se o círculo: assegura-se que o setor privado predomine na atividade econômica, desnacionaliza-se a economia e, de quebra, atende-se aos interesses do sistema financeiro nacional, internacional e multinacional.
Previdência mercantil
A necessidade e importância de ajustes na Previdência é afirmada pelos especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato. Algo a ser pensado sempre em médio e longo prazo e que se deve adotar especialmente em momentos de crescimento econômico.
Kliass explica que as propostas que estão sendo apontadas pela equipe de Bolsonaro, em tentar “resolver” o deficit da Previdência em 2019 e 2020, não representam um caminho correto e adequado. “Isso só se resolve promovendo o crescimento da economia e promovendo o aumento do número de empregados nas empresas com carteira de trabalho assinada”.
Sicsú aponta um duplo problema na agenda proposta por Bolsonaro para a Previdência: além de adotada em um momento de crise (inadequado por definição) as propostas acabarão por gerar “uma regressão social muito grande”.
No atual regime da Previdência Social brasileira, o “cidadão pode viver com segurança porque toda a sociedade é responsável por cada um de nós”, explica Sicsú. E o que seria o sistema de capitalização, um dos “sonhos de consumo” da equipe de Bolsonaro? “Cada um é responsável por si próprio”, resume. “O sistema de capitalização é um sistema sempre complementar”, destaca o professor da UFRJ, que defende que a capitalização possa ser adotada por cada pessoa como uma aposentadoria adicional, “mas não como a sua garantia de segurança ao longo da sua vida”.
A mudança na compreensão e no funcionamento da Previdência do Brasil é objeto de cobiça mundial. “É um fundo bilionário, que vai deixar de ser, sob a ótica deles, um direito de cidadania e fundos públicos para pagar benefícios de direitos sociais, para se transformar em um fundo que vai estabelecer uma relação mercantil entre clientes e instituições financeiras”, acrescenta Kliass. Para o especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, “o banco vai gerir a previdência na perspectiva de lucro, não como direito do trabalhador”.
Ele levanta uma preocupação adicional nesse sentido, relativa aos momentos em que houver crise com esses fundos. “O banco vai querer se preservar e vai deixar o direito do trabalhador a ver navio”. Kliass explica que o sistema chileno que foi estruturado com essa lógica quebrou, assim como o sistema argentino. Nos dois países, “voltaram a ser sistemas públicos. E os grandes prejudicados foram os pensionistas e os trabalhadores”.
Para Pedro Rossi, “a Reforma da Previdência é um tema muito difícil de ser encaminhado politicamente. É preciso de muita habilidade”. O docente da Unicamp avalia que “que não há possibilidade de imitar o modelo chileno sem que aconteça um desastre” no Brasil. Para ele, dificilmente o governo encaminhará a proposta, ao se deparar com um desastre iminente.
Rossi ressalta que o processo eleitoral de 2018 foi muito específico, apresentando um debate muito raso sobre os grandes temas nacionais e da economia, que jamais se colocaram em primeiro plano. “Para os economistas em particular, foi uma eleição muito decepcionante”. Em primeiro plano, “ficou um debate muito raso, um debate moral, em torno de temas morais. Em particular a corrupção, em particular as questões religiosas, para não falar de temas das baixarias e das fake news”, resume.
Rossi acredita que a falta de debates sobre os temas econômicos na eleição será um elemento adicional nas tensões que serão vistas na sociedade nos próximos anos. Tensões que posteriormente “vão se contrapor a esse projeto econômico” pouco debatido, “e eventualmente impedir que algumas reformas sejam implementadas”, conclui.
Política comercial
Outra área que já desperta muitas polêmicas e controvérsias, antes mesmo de Bolsonaro assumir, é a da Política Externa e Comercial. Algo que, a se julgar por declarações do futuro chanceler do Itamaraty, Ernesto Araújo, e mesmo de Bolsonaro e Paulo Guedes, só deve aumentar após assumirem de fato o poder.
“Quem é do ramo sabe que não de brinca com uma coisa como o Mercosul”, alerta Kliass, referindo-se às declarações de Guedes de que a Argentina e o Mercosul “não são prioridade” para a futura gestão do Brasil.
Pedro Rossi ressalta que tornar a América Latina, em particular o Mercosul, como uma área prioritária tem grande sentido “porque boa parte das exportações industriais brasileiras são para a América Latina”. Nesse sentido, “o Brasil é um grande exportador de commodities para a Europa, Estados Unidos, China, mas é um país que ainda tem uma estrutura industrial importante, e exporta bens manufaturados principalmente para a América Latina”.
Para ele, caso esse espaço privilegiado de comércio externo deixe de ser prioritário, o impacto maior será nessa estrutura industrial. “Mais uma vez, eu acho que haverá resistência de uma parte do setor produtivo brasileiro com essas políticas” que na prática se voltam a uma “insersão subordinada no sistema internacional, alinhada com os interesses americanos”.
Rossi avalia que essa nova orientação, bastante ideológica, “seria prejudicial em particular para a diversidade produtiva que nós construímos na nossa história”, nas últimas décadas.
“É o pior dos mundos. Os Estados Unidos estão se fechando, e o Brasil está oferecendo a abertura da sua economia. A gente vai perder pelos dois lados”, alerta Kliass.
Rossi conclui explicando que o Brasil ainda conta com esse setor produtivo diversificado “em boa parte por conta das relações com a América Latina e com a valorização do nosso mercado interno para o setor industrial”, Segundo ele, “uma abertura comercial generalizada pode fazer com que esse processo de desconstrução da indústria se acelere muito”.
Em tempo, dois indicadores positivos nessa área demonstram que é preciso muito cuidado – e estudo – antes de se realizar qualquer medida de maior impacto nela (a exemplo da irresponsável declaração de Bolsonaro sobre Israel e a mudança da embaixada brasileira no país de Tel Aviv para Jerusalém).
As reservas internacionais do Brasil em 14 de novembro alcançavam a importante cifra de 381,45 bilhões de dólares (dez vezes maiores que ao final de 2002). E, no ano de 2017, o Brasil teve um saldo recorde em sua balança comercial com o restante do mundo, com 67 bilhões de dólares ingressando em nossa economia.
Fonte: Brasil de Fato