Declínio neoliberal pode precipitar retorno da esquerda e maior integração regional
Nos últimos meses, a América Latina protagonizou um dos mais intensos processos de convulsão social em décadas. Atingindo seu ponto mais alto nas manifestações que tomaram o Equador e o Chile no início de outubro, a crise que se alastrou por países da região também fez aparições no Haiti e no Peru, além de influenciar o resultado das eleições na Argentina.
Embora as insatisfações tenham raízes distintas, especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que é possível identificar aspectos comuns nas movimentações populares que ganharam corpo em 2019. Para eles, eventos recentes, como a vitória de líderes de esquerda em nações estratégicas e o desgaste provocado por políticas de corte neoliberal, podem levar a uma retomada do processo de integração regional e do modelo de desenvolvimento adotado por governos progressistas e paralisado pela ascensão de mandatários de direita.
Segundo Celso Amorim, ex-ministro das Relações Internacionais durante os governos de Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva, a onda de turbulências, assim como a vitória de Alberto Fernández na Argentina e a manutenção de Evo Morales na Bolívia, podem conduzir a região a um novo ciclo.
“Podemos voltar a ter processos de integração. Claro que qualquer ação sem o Brasil será incompleta, mas eu acho que vai mudar um pouco o clima na região […] Antevejo que a Argentina possa voltar a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Ela não foi encerrada, os países só foram saindo, mas Bolívia e Venezuela ainda eram membros”, disse.
Fundada há mais de uma década, o bloco reunia 12 nações: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Guiana, Suriname e Venezuela. Nos últimos anos, sete países deixaram a Unasul, sendo que alguns fizeram pedido oficial de saída e outros suspenderam a participação. Hoje, ela é formada apenas por Bolívia, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.
“Fernández deve ver como fazer as coisas taticamente, ele tem que considerar outros instrumentos que podem ser mobilizados, como por exemplo a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), que abriga toda a América Latina e Caribe. Aí você tem o peso do México. Eu acho que [esse modelo] pode voltar, não da mesma forma que antes – porque a história varia, as condições são sempre diferentes –, mas eu acho que vai voltar o ânimo de uma integração forte”, afirma o ex-chanceler.
“Atestado de óbito” do Prosul
Se por um lado os governos mais à direita foram responsáveis por esvaziar blocos fortes como a Unasul, de outro, se organizaram em novas iniciativas. A mais recente delas foi o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), acordo que conta com a participação de oito países.
O texto foi sancionado em março deste ano pelos presidentes Mauricio Macri (Argentina), Sebastián Piñera (Chile), Mario Abdo Benítez (Paraguai), Martín Vizcarra (Peru), Iván Duque (Colômbia), Lenín Moreno (Equador), Jair Bolsonaro (Brasil), e pelo embaixador George Talbot (Guiana).
No entanto, para Gilberto Rodrigues, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), a empreitada liderada pelo Chile, que deliberadamente excluiu países governados pela esquerda, como Bolívia e Venezuela, tem diferenças marcantes quando comparada à Unasul e Celac.
“A Unasul é um projeto abrangente na integração e na filiação, inclusivo e institucionalizante (com estatuto, órgãos etc) que visava substituir alguns papéis da OEA (Organização dos Estados Americanos) na América do Sul – mas não totalmente. A Celac, que não teve tempo de avançar, é abrangente, incisivo e ambicioso para uma articulação latino-americana e caribenha. Estaria mais próxima da ‘Pátria Grande’ de Simón Bolívar”, explica.
Já o Prosul, afirma Rodrigues, “é uma declaração com objetivos focados em liberalização comercial intrarregional. Não tem institucionalidade, está ancorada em acordos liberais com os Estados Unidos”.
Para ele, no entanto, as configurações recentes na América Latina inviabilizam o pacto. O professor afirma que as manifestações que tomaram o Chile assinaram “o atestado de óbito” do Prosul. A “pá de cal” vem com a vitória de Fernández na Argentina, país que pode redirecionar seus esforços aos blocos mais consolidados
“O Prosul recebeu seu atestado de óbito a partir das manifestações no Chile, país que lança o Prosul com a Declaração de Santiago. Sem dúvida, a iniciativa, que foi uma movimentação lançada por Piñera, Bolsonaro e mais alguns presidentes de direita ou de ultradireita, não tem a menor chance de seguir adiante. Isso porque o Prosul só promete comércio, liberalização do comércio, mas a população está pedindo mais igualdade, mais renda igualitária".
Neoliberalismo chileno, um espelho quebrado
Tanto para Amorim quanto para Rodrigues, é necessário esperar para ver quais serão as consequências das manifestações chilenas. Eles também não rejeitam a possibilidade de que mobilizações como as que ocorreram nos últimos meses cheguem ao Brasil.
Segundo Amorim, “não é possível simplesmente ignorar o que aconteceu no Chile. O que foi questionado lá não foi só o governo Piñera, não foi só a repressão ou o aumento das passagens, foi todo o sistema neoliberal. Esses ventos vão bater no Brasil. Se não bater diretamente na Presidência, que parece encapsulada em uma coisa muito fechada, vai rebater no Congresso”.
Já para Gilberto, devemos olhar para o Chile por ser a nação que inaugurou grande parte das políticas neoliberais que outros países da região tentam colocar em prática.
“O Chile é o termômetro de como a gente caminha, mas ao mesmo tempo, a Argentina, onde houve uma eleição de bastante matiz partidário e em que venceu um partido de centro-esquerda, tem um desafio grande, que é o de saber se os partidos vão conseguir sobreviver a essa nova onda, ou se vão sucumbir a novas formas de participação política”, diz.
Para os especialistas, o esgotamento do modelo neoliberal se deve, em parte, ao fato de que um dos grandes desafios da região está na diminuição das desigualdades, algo em que as administrações deste corte estão falhando em atender.
“Essa discussão é global, mas na América Latina ela tem um fator muito presente, e a direita e a ultradireita não têm instrumentos para reduzir essas desigualdades. Então, o que está ocorrendo é uma volta dos governos de esquerda, ou a manutenção deles. Creio que é um período novo, e que vai exigir muita liderança por parte dessas administrações".
Fonte: Brasil de Fato