Conheça a história de Elton Brum da Silva, camponês que perdeu a vida na luta por um pedaço de terra há 14 anos
No amanhecer do dia 21 de agosto de 2009, fechavam-se para sempre os olhos do trabalhador rural Elton Brum da Silva, aos 44 anos. O tiro de escopeta calibre 12 lhe atingiu pelas costas. Mais um sem-terra, homem negro caía, em uma das mais violentas ações de reintegração de posse de um latifúndio improdutivo, na cidade de São Gabriel, no interior do Rio Grande do Sul.
Sem qualquer motivo, um tiro a queima roupa ceifou a vida de um camponês que sonhava ter um pedaço de terra para plantar e poder criar a sua família com dignidade. Esse homicídio qualificado deixou filha, esposa e seu pai já idoso desamparados.
“A Polícia Militar mandou todo mundo se deitar no chão, mas a gente não sabe porque, o companheiro Elton ficou paralisado”, lembra Leonice Aparecida de Oliveira Flores, assentada em São Gabriel há 15 anos, e que estava na ocupação da Fazenda Southall, latifúndio de milhares de hectares, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul.
“Foi um dia bastante triste pra todos nós, da classe trabalhadora, não só do MST, porque quando a gente se dispõe a lutar por nossos direitos no nosso país e no mundo, não é de barbada. Todas nossas conquistas são fruto de muita luta. A vida das famílias trabalhadoras, pobres, infelizmente é de empurrões e muita violência, muita truculência da polícia.”
Naquele fatídico dia, além de Elton, dezenas de sem-terra sentiram a violência do aparato policial militar, que perpetrou agressões, danos e torturas, inclusive contra idosos, mulheres, jovens e crianças, violências documentadas e comprovadas pelos relatórios do Comitê Estadual Contra a Tortura.
“Muitas pessoas ficaram feridas”
Leonice lembra que eles ficaram desde o início da manhã, quando a polícia militar entrou no acampamento, até as 16h30, na mesma posição deitado ou sentado no chão, não podiam sair nem para ir no banheiro, só para levar as crianças.
“Muitas pessoas ficaram feridas, mordidas por cachorros, pisadas pelos cavalos e tiveram que ser atendidas no hospital. Os policiais jogavam gás lacrimogênio no meio das crianças. A gente tentava se proteger com o que tinha. Eu tava com a minha filha de 9 meses no colo, e protegia o rosto dela com um cobertorzinho. Muitas mulheres desmaiaram, porque o apavoramento das mães com mais crianças era mais difícil. A gente se ajudou muito, pra tentar se acolher, mas levava bordoada nas costas. A gente nem sabe se foi bala de borracha ou cacetete, porque onde eles passavam pela gente, largavam a porrada”, recorda com a voz embargada.
Segundo Leonice, as crianças ficaram com muito medo. “Acredito que tenham trauma até hoje, quem viveu aquela situação. Ficou provado que eles vieram pra tentar acabar com a luta do MST em São Gabriel por ordem da governadora do estado Yeda Crusius (PSDB). Porque senão eles não teriam vindo com as armas carregadas com balas letais, o que é proibido em despejos. Foi muita covardia, atirar pelas costas, numa pessoa que tava desarmada, que nunca agrediu ninguém... A gente não viu que eles tinham matado o Elton, porque se tivéssemos visto poderia ter havido revolta, podia ter morrido muito mais gente.”
Somente depois de mais de 11 anos, o brigadiano Alexandre Curto dos Santos, que assassinou Elton, foi preso em Pelotas. O Policial Militar foi condenado a 12 anos de prisão em regime fechado e a perda do cargo público. Essa perda do cargo jamais foi efetivada pelo Estado do Rio Grande do Sul, que manteve o servidor vinculado aos seus quadros.
Segundo o advogado do setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Emiliano Maldonado, a prisão foi um passo importante na busca por justiça. “A responsabilização civil do Estado e criminal do autor do homicídio é algo extremamente raro nos casos de violência policial, especialmente, quando se trata de vítimas que militam em movimentos sociais”, destaca.
Nesse sentido, o advogado ressalta que conforme pesquisas da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS): dos 1.496 casos de violência no campo ocorridos entre 1985 e 2020, apenas 122, ou seja, 6%, haviam sido julgados, acarretando na condenação de só 35 mandantes e 106 executores desse tipo de crime. “Nesses 35 anos analisados pela CPT, esse tipo de violência que ceifa a vida de indígenas, quilombolas, trabalhadores/as rurais que tombam nos conflitos agrários brasileiros permanece impune”, conclui.
No caso do Elton Brum, após alguns meses de iniciar a cumprir sua pena, o ex-sargento da Brigada Militar Alexandre Curto do Santos, foi encontrado morto no dia 26 de março de 2022, no Presídio Policial Militar.
Na época, a família de Elton Brum lamentou o falecimento do réu e consideraram fundamental a realização de uma sindicância para a investigação isenta das causas do óbito que ocorreu dentro de uma repartição pública.
No âmbito cível, a família aguarda há mais de uma década pela reparação aos danos sofridos em decorrência do homicídio. Em 2016, a mulher, filha e o pai de Elton Brum obtiveram, na justiça, o direito a indenizações em valores individuais que variam de R$ 40 mil a R$ 50 mil, e a filha deveria receber pensão no valor de um salário mínimo até completar 24 anos. Porém, por causa de uma série de recursos apresentados pelo Estado, até agora eles não constam na lista de precatórios e não receberam a indenização.
Mesmo com as dificuldades e perdas, a luta deu frutos. O latifúndio de mais de 7 mil hectares, palco do assassinato, foi considerado improdutivo pelo Estado brasileiro e teve parte das suas terras destinadas à Reforma Agrária, abrigando cerca de 225 famílias no Assentamento Conquista de Caiboaté, que se dedicam à agricultura familiar na região e produzem alimentos saudáveis.
Fonte: Brasil de Fato