35 anos da Constituição: texto foi resiliente em crises, mas direitos ainda estão só no papel, avalia pesquisadora
A Constituição da República Federativa do Brasil completa 35 anos de promulgação nesta quinta-feira (5). Alvo de polêmicas, desde a proposta até a aplicação, a legislação fundamental do país não é apenas um conjunto de leis, ela simboliza também um momento único na história brasileira.
A produção do texto andou junto com a redemocratização, após mais de 20 anos de regime militar. Em 1985, Tancredo Neves – primeiro civil eleito à Presidência depois do período ditatorial, marcado por eleições indiretas – tinha a construção da Constituição como promessa de campanha.
Com a morte dele, pouco antes da posse, a tarefa ficou para o então vice-presidente José Sarney, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte. A grande protagonista do processo foi a população brasileira, mas, entre os três Poderes, o Congresso Nacional teve destaque.
Entre fevereiro de 1987 e setembro de 1988, o parlamento recebeu movimentos populares, organizações da sociedade civil, especialistas, estudiosos e sugestões de todo o Brasil. Foram mais de 72 mil contribuições que vieram diretamente da população por meio de campanhas lançadas pelo Poder Legislativo.
O debate reuniu campos políticos opostos, envolveu estados e municípios e foi permeado por polêmicas do início ao fim. De um lado, o campo conservador e políticos ligados à elite econômica diziam que o Brasil seria ingovernável e criticavam as garantias sociais que o texto trazia.
Do outro lado, a esquerda – muito representada pelo ainda jovem Partido dos Trabalhadores (PT) na ocasião – achava pouco. A manutenção de privilégios para militares, a ausência do tema reforma agrária e a falta de regulamentação de diversos pontos do texto eram considerados um risco grande para a democracia.
Mesmo com os debates e as discordâncias, 35 anos depois, é possível dizer que a Constituição foi resiliente às crises históricas que o Brasil viveu nesse período. Já de saída, o país teve que lidar com o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992. A lei fundamental do Brasil deu conta da situação e se provou forte em outros momentos de instabilidade.
“Quem é brasileiro sabe que nós não estamos acostumados a viver com tranquilidade, sempre há tensão”, afirma Marina Slhessarenko Barreto, pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo.
Ela lembra que o texto passou por debates intensos, que duraram cerca de 20 meses e refletiram diversidade e conflitos. “Foi uma Assembleia Constituinte cheia de movimentos dos mais variados setores, de ruralistas a movimentos sociais, indígenas, enfim, uma plêiade de forças muito diversas. Isso realmente está no texto final”, detalha.
O processo de construção do texto também deu o tom sobre como seria a política brasileira nas décadas seguintes. Dele nasceu o centrão, fruto de discordâncias dentro do PMDB nos debates da Constituição. Também ficou explícito quão delicadas seriam as relações entre os poderes e que o equilíbrio entre eles seria ponto central para a manutenção da democracia.
“A letra constitucional é muito bonita mesmo, ela emociona. A Constituição está no topo, mas a verdade é que dependemos de uma cascata de instituições, de leis, de pessoas abaixo dela que precisam ser implementadas. A Constituição é o primeiro e último passo. Não adianta ter só ela, temos que ter estruturas, agências de governo, instituições legislativas e movimentos sociais que funcionem”, ressalta Slhessarenko.
Resiliência às tensões
“Quem é brasileiro sabe que nós não estamos acostumados a viver com tranquilidade, sempre há tensão. É um texto que foi muito debatido, uma Assembleia Constituinte que foi cheia de movimentos dos mais variados setores, de ruralistas a movimentos sociais, indígenas, enfim, uma plêiade de forças muito diversas. Isso realmente está no texto final
Inclusive, durante o próprio debate constitucional, tivemos aquela frase que se imortalizou do Ulysses Guimarães falando que ingovernável não era a Constituição, ingovernável era a fome e a miséria e que a Constituição garantiria a governabilidade e a estabilidade de governo. Ele falou isso em resposta ao José Sarney, então presidente, que dizia que era um absurdo ter todo aquele catálogo de direitos e que a Constituição não ia sair do lugar, que ia ser fraca. Esse é um mote bastante importante neste 5 de outubro.
A Constituição, desde o seu nascimento, que foi bastante tenso, enfrentou outras diversas tensões. O impeachment de Collor foi, de fato, uma prova de choque. Tivemos também o impeachment de Dilma Rousseff, muito depois, em um outro cenário.
O que é importante é notarmos que o melhor que a Constituição pode fazer é conseguir dar as regras do jogo. Ela sedimenta um campo, ela coloca o campo de futebol onde os jogadores vão jogar. Os jogadores são as instituições, os atores políticos, a sociedade civil, cidadãos, todo mundo junto. Esses atores vão fazer a Constituição no dia a dia.
Ela não é o texto que foi promulgado em 1988, mas sim o texto que sobrevive desde então. É um texto que é praticado ou não praticado. Todos esses anos, todos esses choques, de fato, por um lado demonstram a resiliência da Constituição, demonstram que ela conseguiu ainda se manter como o básico das regras do jogo para esses atores políticos e para a sociedade civil.
Em alguma medida, continua sendo um coro bastante relevante falar que a Constituição é a grande revolução da democratização brasileira, que trouxe muitos direitos bastante importantes, garantias institucionais democráticas, independência do Ministério Público, em termos institucionais. Muita coisa mudou ali, mas, ao mesmo tempo, observamos que não é só a Constituição que vai poder dar (garantias), nós dependemos de todas as práticas.”
Instrumentalização pela direita
“A Constituição é a linguagem comum que conseguimos estabelecer. É importante falar dela, porque justamente ela vai ditar a prática do dia a dia. Mais do que no horizonte das instituições, é preciso que, efetivamente, os movimentos sociais e as pessoas estejam com a Constituição na ponta da língua.
O que temos visto de problema, mas a Constituição tem se mostrado resiliente, é justamente como a extrema direita tem instrumentalizado a Constituição e os direitos para avançar suas pautas. Toda a construção que tivemos dos anos 1990 para cá de um estado de bem-estar social – implementado, inclusive junto com iniciativas neoliberais gritantes – está agora na pauta do dia dessa extrema direita, que fala que a liberdade de expressão é liberdade de desejar a morte de alguém, de divulgar notícias falsas.
Há toda uma disputa que agora está se dando em uma arena que não era conhecida lá atrás e a disputa se dá nos termos da Constituição. Então, por pior que a disputa seja, ela legitima ainda o espaço constitucional.”
Ainda falta avançar
“Se pararmos para pensar na história constitucional brasileira, tivemos muitas constituições até hoje. O fato é que não é comum na história dos países ter uma troca tão acelerada de constituições. A nossa Constituição fazer 35 anos é um marco bastante excepcional mesmo.
Principalmente se considerarmos o que veio antes, que era todo esse cenário ditatorial. Foi tentado, de alguma forma, ser manejado com anistia, com todas as dores daquele período. Sabemos que havia forças muito poderosas e que ainda hoje atuam, como os militares.
Como lidamos com tudo isso? A Constituição e a aplicação dela foram sábias. Quem faz a aplicação da constituição somos nós. Não é só o Supremo Tribunal Federal, não é só o Congresso Nacional ou a Presidência da República. São cidadãos, eminentemente, que têm que viver a Constituição.
A resposta que queríamos dar é de que todos os direitos estão garantidos e que todo mundo tem direito à moradia, saúde e educação de primeira qualidade. Infelizmente não é assim, principalmente depois de um cenário autoritário e de uma pandemia que arrastou o Brasil de novo para a pobreza e para o mapa da fome.”
Força social
“De um lado esse processo constituinte foi bastante gestado por movimentos sociais, por forças das mais diversas na sociedade, não só progressistas. Tivemos muitas forças reacionárias lá também, que conseguiram emplacar o artigo 142, por exemplo.
O processo anterior à constituinte – que foi o processo das Diretas Já para levar a uma eleição direta para presidente – também foi sem precedentes. Nós já tínhamos, antes da Constituinte, todo o movimento social que estava sendo organizado, o movimento de base da população indignada com a ditadura e que queria votar para presidente. Era uma pauta que parecia simples, mas não era, porque aquilo era justamente o que não tínhamos.
Esse foi o maior movimento civil da história desse país. Não podemos nos orgulhar mais disso. Juntou a esquerda, a direita, juntou A e juntou B. Depois de ter passado por junho de 2013, esquecemos que as Diretas Já estavam lá e estavam fazendo história no banco da frente.
Então, a Constituinte conseguiu ser estabelecida porque teve muita história popular antes. Tivemos todos esses movimentos, que conseguiram emplacar pautas importantíssimas do movimento negro, indígena, da reforma agrária, que estamos lutando até hoje para fazer, mas que dependem da aplicação dos atores políticos, das forças que estão atuando e de mudanças estruturais muito fortes.
A letra constitucional é muito bonita mesmo, ela emociona. A Constituição está no topo, mas a verdade é que dependemos de uma cascata de instituições, de leis, de pessoas abaixo dela que precisam ser implementadas. A Constituição é o primeiro e último passo. Não adianta ter só ela, temos que ter estruturas, agências de governo, instituições legislativas, movimentos sociais que funcionem.
Ela foi feita em um momento em que, não só no Brasil, mas fora daqui, os movimentos sociais estavam ganhando voz, estavam ganhando agenda de governo. Isso é muito especial, foi muito sem precedentes na história, se pensarmos no século 20, de ditaduras e de fascismo.
Esses movimentos sociais conseguiram finalmente chegar ao estado. Só que nós vivemos a desinstitucionalização desses movimentos sociais, desinstitucionalização de espaços, de participação, de conselhos dos mais variados. Então, daqui para frente. A nossa lente é dupla, tanto de reconstrução quanto de olhar o futuro.
Porque não se pode voltar para trás. Não existe isso. Não tem como voltarmos para o momento constituinte, de um acordo idealizado que nunca existiu. Mas temos que pensar no que esperamos de uma constituição de 2020. Temos desafios dos mais tremendos. Mas, de fato, eles só podem ser efetivamente colocados se tivermos um campo comum, uma linguagem comum. Sabemos que uma dessas linguagens é a Constituição.”
Fonte: Brasil de Fato