Terceirização precisa de normatização, defendem especialistas em seminário nacional
Sem regulamentação, a terceirização é a total desproteção do ambiente de trabalho', afirma o jurista Marthius Sávio Lobato, um dos painelistas do Seminário 'Os desafios da terceirização' realizado no auditório do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, em Porto Alegre na sexta-feira (18) em parceria com o Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS).
Mestre e doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB, Lobato, falou do atraso civilizatório e a violação da dignidade humana promovidos pela ausência da regulamentação da terceirização, desencadeada na esteira da reforma trabalhista.
Os recursos judiciais explodiram, junto com reclamações constitucionais necessitando de debates para construir novos consensos regulatórios. Regramentos para civilizar as contratações e reduzir a precarização foram aspectos aprofundados nas mesas de debates com especialistas do Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Advocacia-Geral da União, profissionais do direito do trabalho, entidades empresariais e sindicais vinculadas ao trabalho terceirizado.
Lei Anticalote, alterações nas leis de licitações, regulação no uso abusivo das MEI, ajustes na representação sindical, apuro na fiscalização dos contratos públicos e tratamento das lacunas criadas pela desregulamentação proposta pela reforma trabalhista na pauta. Os terceirizados recebem 27% menos salário e trabalham três horas semanais a mais que os contratados diretamente. A cada cinco acidentes com morte, quatro são terceirizados, exatamente os que não têm direitos mínimos.
A questão básica é que os trabalhadores e trabalhadoras precisam, no mínimo, receber pelo serviço prestado e assegurar a dignidade humana consistida na Constituição Federal, completa Lobato.
Trabalho escravo e licitações inconsistentes
No setor privado, o Brasil resgatou, em 2023, 3.151 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só em agosto de 2024, foram libertados 593 trabalhadores nessa situação e o número de auditores fiscais do trabalho está no menor nível em 30 anos.
Em contratações desqualificadas, a prática empresarial é paga com a vida. No RS, só no setor elétrico ocorreram oito óbitos neste ano.
No setor público, a terceirização desregulada tem paralisado serviços na área de educação e saúde, entre outras, com interrupções de atividades como alimentação escolar, limpeza e segurança.
Estado paga duas vezes
Nos editais, empresas oportunistas praticam os menores preços para serem selecionadas, recebem o recurso do poder público e desaparecem sem pagar os trabalhadores, gerando judicialização e forçando o Estado a pagar duas vezes pela contratação.
“Nem todas as terceirizações são inadequadas, mas a precarização se dá quando ocorre o dumping social”, elucida a vice-coordenadora de combate as fraudes nas relações do trabalho do Ministério Público do Trabalho, Priscila Dibi Schvarcz.
A reforma trabalhista sem regulação vem aprofundando a insegurança jurídica em vários segmentos, sobretudo os relacionados à administração pública, que, no limite, afasta empresas sérias e povoa o mercado de empreendimentos de rapina.
Normatizar o que é possível
Com 45 anos de advocacia sindical o coordenador do Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS), Antônio Escosteguy Castro, pontuou que diante da ampla liberação da terceirização pelas decisões do STF após a Reforma Trabalhista, resta buscar brechas para normatizar alguns procedimentos que evitem maior precarização.
“O recente Decreto Federal 12.174 dá garantias aos contratos trabalhistas terceirizados da União e é tido como um início auspicioso de possibilidades”, entende Castro. Entre as alternativas estão a exigência das empresas contratadas depositarem valores para assegurar os direitos trabalhistas e levar isso a outros entes da federação.
Desafios a superar
Para o especialista, há três desafios para avançar: regular a utilização dos MEIs como forma de contrato para evitar mão de obra terceirizada irregularmente; especificar quem pode ser objeto de contratação dos MEI e discutir a representação sindical para consensuar quem representa os trabalhadores/as em acordos coletivos para assegurar trabalho decente, como preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT), desde 1999.
“O patronato não pode fazer qualquer coisa. Não é verdade que as decisões do STF acabaram com direitos trabalhistas e é preciso disputar as brechas deixadas”, reitera o coordenador do ITTS, entidade que promoveu o Seminário em parceria com a Escola Judicial do TRT4 (Ejud). Para o coordenador da Ejud, o desembargador Fabiano Holz Beserra, o seminário contribui para debater e formular conceitos fundamentais da terceirização, mas também pontuar lacunas e ambiguidades existentes na sua regulamentação”.
Lei gaúcha anti-calote inspira soluções nas contratações públicas
Pela manhã, o autor da LeiNº 16.110, vigente desde 9 abril de 2024 no RS, o deputado estadual Luiz Fernando Mainardi, tratou da chamada Lei Anti-calote, aprovada neste ano na Assembleia Gaúcha para garantir cumprimento de obrigações trabalhistas, exigindo das empresas capacidade contábil e financeira.
Pela lei já em vigor, os órgãos públicos contratantes devem exigir caução, fiança bancária, seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas e conta-corrente vinculada - bloqueada para movimentação da empresa, assegurando recursos para pagamento dos trabalhadores/as em caso de descumprimento das obrigações com os prestadores do serviço.
“Esta legislação traz algumas garantias para evitar que empresas oportunistas apresentem o menor custo e desapareçam com os valores pagos pelo estado sem pagar os trabalhadores e trabalhadoras, prática constatada em grande escala em todo o país”, observou o parlamentar.
Diálogo Social e mudanças na Lei
O superintendente Regional de Trabalho e Emprego, Claudir Nespolo, apresentou o trabalho realizado conjuntamente com entidades sindicais empresariais e laborais e propõe ajustes na Lei Federal das Licitações 14.133/21 e na Lei estadual 16.077/23 para determinar que o gestor público adote mecanismos de garantia para execução integral dos contratos.
Ato dia 11 de novembro no Parlamento gaúcho
Documento formulado nos debates Câmara Setorial do Trabalho Terceirizado (CSTT) será entregue dia 11 de novembro, 14h, em ato na Assembleia Legislativa, reunindo representantes de diferentes poderes, empresários e trabalhadores integrando o Pacto pelas Boas Práticas Trabalhistas e Enfrentamento à Concorrência Desleal firmado em dezembro passado.
As medidas visam combater a recorrente descontinuidade na prestação de serviços por empresas que deliberadamente assinam contratos que não podem cumprir, prejudicam empreendedores sérios, lesando trabalhadores, interrompendo a prestação dos serviços e onerando o poder público.
Nespolo é entusiasta do diálogo social como meio consistentes para construir soluções e dar segurança a quem sobrevive nesse meio.“Temos que enfrentar o diálogo social como forma de recolocar parâmetros equilibrados nas relações laborais. Não é possível que o trabalhador terceirizado fique inseguro e o Estado moderno se mantenhaa custa do trabalho precário no ambiente público e privado”, afirmou o dirigente do MTE no estado.
Acordo federal paga 10 mil trabalhadores em litígio
O Governo Federal enfrentava 12 mil processos de trabalhadores/as que não tiveram seus salários pagos pelas empresas que prestavam serviços à União e acionaram a justiça, informou a advogada da Advocacia-Geral da União, Mônica Casartelli, painelista no evento.
Ela divulgou o acordo feito em setembro, que extinguiu 95% desses 12 mil processos que envolviam a União e terceirizados. Destes, 70% tramitavam há mais de 10 anos; 80% não chegavam a R$ 25 mil, 39% não chegavam a R$ 15 mil.
O Estado brasileiro tem que defender a CLT
“O modelo atual não é bom. Quanto mais se trabalha menor valor tem. Os operadores do direito administrativo têm dificuldade de humanizar a atividade. Atrás daqueles processos têm pessoas fragilizadas que não receberam seus direitos. O mesmo Estado que não quer pagar o direito do trabalho é o mesmo que paga o bolsa-família”, alerta.
“A precarização do trabalho nunca gerou desenvolvimento. As formas de organização do trabalho se alteram, as tecnologias ficam obsoletas, mas o ser humano e seus direitos basilares precisam de solidez e segurança. Os direitos básicos garantidos na CF/88 precisam de concretude. Não deixemos de nos sensibilizar e tenhamos coragem”, afirmou Casartelli. A especialista destaca que mesmo que seja legal e constitucional, a terceirização precisa cuidar dos direitos por ser um processo civilizatório.
“O terceirizado da administração pública é mais precarizado que na iniciativa privada”, disse Casartelli.
“Sou advogada da União e há diferentes visões de mundo o que gera problema estrutural, longe do ideal”, concluiu a pesquisadora que está prestes a lançar um livro sobre o tema. E pondera: Sem pacificação do tema, a cada julgamento o cenário fica mais complexo.
Melhorar licitações para evitar fraude
O artigo 121 da nova lei de licitações (14133/21) prevê a criação de uma conta vinculada em que só o ente público pode movimentar, determinando que as empresas depositem valores suficientes para quitar passivos trabalhistas e evitar calotes. Prevê ainda a responsabilidade do Estado em fiscalizar o contrato.
“O Estado tem responsabilidade sobre o que está acontecendo. Estamos presos a uma ideia de austeridade, engessada, incapaz de perceber a inexequibilidade dos contratos”, pontua a representante do MPT. Para Priscila Dibi Schvarcz, os novos modelos de editais públicos devem aprimorar as contratações evitando fraudes e calotes na administração pública responsabilizando o Estado como fiscal do contrato e prevendo conta vinculada para assegurar pagamento aos contratados.
“A administração pública paga o dobro por aceitar o menor preço e não fiscalizar sequer se o valor proposto cobre o pagamento do salário e verbas rescisórias”, enumera a especialista que viu exorbitar as ações trabalhistas após a terceirização. “Não faz o menor sentido não selecionar de forma adequada, não adotar medidas efetivas de fiscalização como já prevê o Artigo 121 da Nova Lei de Licitações 14133/2021”, declara Schvarcz.
A especialista destacou o acordo de cooperação técnica firmado em março, entre a AGU e o MPT, capacitando gestores. “Boa fiscalização evita calote e ações judiciais”, afirma. O Estado tem o ônus de fiscalizar. É só seguir o cheklist exigido na Instrução Normativa do Ministério do Planejamento, recomenda.
Especializados em dumping social
O pesquisador do Instituto Gaúcho de Asseio e Serviços (Igas), Cândido da Roza, apresentou um estudo detalhado da prática de dumping social, demonstrando que algumas empresas se especializaram em vencer licitação por menor preço, dar calote, e reabrir empresa com outro CNPJ, continuando a prática criminosa que lesa o Estado e prestadores de serviço.
Revelou o caso de uma empresa com 545 ações trabalhistas em diferentes municípios, operando nas redes públicas de educação, saúde e hospitais. “São evidências de um processo pensado. É um tema muito pouco difundido com dificuldade de reconhecimento do dumping social. O dado do lucro só mostra que é mais barato não pagar e deixar o dinheiro aplicado prejudicando empresas sérias que efetivamente podem prestar o serviço”, completa.
O plenário do TRT4 esteve repleto de representações diversas e dispostas a encontrar caminhos para problemas concretos. “Este já foi um objetivo atingido por este Seminário”, avalia a assessora do ITTS, Lucia Garcia. “A reunião de tantas representações que analisam os danos da terceirização por múltiplos enfoques demonstra a premência de soluções para a pobreza, exclusão e ineficiência que a desregulamentação vem gerando”, ressalta a economista. Ela adianta que o evento terá outros desdobramentos por ser um tema que obrigatoriamente é pauta no mundo do trabalho em diferentes espaços e esferas.
Fonte: Stela Pastore (ITTS)