“Temos de taxar mais a renda e menos o consumo e os salários”

 

Um dos maiores trunfos do capitalismo é seu dinamismo e sua capacidade de se reinventar a cada crise que sofre. No século 19, Karl Marx havia desvendado esse mistério em O Capital, obra máxima que explicou o funcionamento do sistema que recém havia tomado corpo.

Desde então, já foram muitas as reinvenções do capitalismo. Os acordos de Breton Woods, assinados em 1944, foi uma das maiores delas, visto a urgência de ditar uma nova ordem econômica após a grande depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. Para não entregar os dedos, alguns anéis tiveram de ser cedidos pelos capitalistas.

Após a grande depressão, os países desenvolvidos se atentaram para a necessidade de uma presença maior do Estado na vida econômica do cidadão. Emergiu daí o Keynesianismo, corrente que visava reformar o capitalismo como ele existia até a década de 1930. Seu mentor era John Maynard Keynes e defendia que o Estado havia de agir para manter os níveis de emprego altos para que a população tivesse certo grau de bem-estar econômico.

Mas, como o dinamismo marca a trajetória da nossa sociedade capitalista, após o fim da URSS e da ordem bipolar do mundo, novamente se colocou sobre a mesa a necessidade de deixar o mercado e sua mão invisível agir. A modernidade estava nas privatizações de estatais para que o governo pudesse “gastar dinheiro onde a população precisasse”. Hoje, nós sabemos que a investida neoliberal não deixou boas recordações pelo mundo.

Após a crise financeira de 2008, que levou muitos países à recessão e cobra seu preço com números de desempregados ainda recordes em diversos países da Europa, pairava no ar alguma ideia nova que viria para discutir velhos problemas do nosso sistema como o rentismo e a distribuição de renda.

O nome da vez é o francês Thomas Piketty, autor do livro O Capital no Século XXI. Para alguns, um estudioso que consegue analisar os dados e dar um novo panorama sobre a desigualdade pelo mundo. Para outros, alguém que só está querendo, mais uma vez, reformar para manter o capitalismo vivo.

Em uma palestra ministrada dia 28 de novembro no campus de São Bernardo da Universidade Federal do ABC (UFABC), Piketty acredita que sua obra consegue, com um número de dados muito maior, jogar uma nova luz sobre o debate da desigualdade de renda.

“Hoje, existe um número de dados muito maior dos países. Resolvi me debruçar sobre eles pois muitos economistas achavam que era um problema muito histórico pra eles; já os historiadores acreditavam que o problema era muito econômico”, resumiu.

Para ele, também é muito difícil saber qual a tendência da desigualdade nos próximos anos, mas vê a desregulamentação financeira como algo a se preocupar.

Aumento da desigualdade

A obra de Piketty analisa dados de 20 países desde quando começaram a cobrar taxas sobre a renda.A conclusão que se chega é que a parcela mais rica da população concentrou ainda mais renda nas últimas décadas.

“Ao contrário do que todos achavam que iria acontecer com a desigualdade após a Segunda Guerra, ela aumentou ainda mais”, explicou.

O caso estadunidense chama atenção. O país sempre ficou no patamar de 33% da renda total entregue aos 10% mais ricos entre as décadas de 50 e 80. A partir daí, então, ela disparou até chegar aos 50% em 2012, descolando-se das taxas europeias e se aproximando da brasileira.

Piketty elenca alguns fatores que fizeram a renda ficar ainda mais concentrada: a globalização e a falta de educação de qualidade para a maioria da população do Estados Unidos.

“Esse crescimento da desigualdade é muito maior nos EUA do que na Alemanha e no Japão. A falta de acesso à educação de qualidade explica essa diferença. São poucos os que chegam a faculdades de ponta como Harvard. Mas isso só não vai acabar com o problema, é importante uma reforma na tributação”, analisou.

Pelo que passaria essas transformações? Para ele, acontece no mundo todo uma prática em comum que, somente se corrigida, poderia inverter a lógica dessa centralização: a maior taxação dos ricos.

“Deveriam existir impostos mais progressivos entre renda e capital. Maior taxação na renda e menos taxação no consumo e nos salários. Se os mais ricos estão ganhando mais por ano, eles pagam mais naquele ano. Se no seguinte eles ganharem menos, paguem menos”, simplificou.

Piketty ainda reforça que a renda familiar ganhou muita importância em um capitalismo que gera mais renda para quem tem mais dinheiro. Ele exemplifica seu ponto apontando a dificuldade de conseguir comprar imóveis nas principais cidades do mundo.

“Quem é da classe trabalhadora e quer comprar um imóvel em São Paulo, Londres ou Pequim somente com o salário não consegue. Na maioria das vezes depende de outras rendas”, disse.

Governos precisam investir mais

Outra conclusão a que o estudo dos dados chega é que o capital privado nos países é cada vez maior do que o público. Ou seja, o investimento estatal é cada vez menor em tempos de baixo crescimento econômico, ao contrário do que defendia Keynes.

Thomas dá o exemplo da Itália, que tem o capital público negativo, ou seja, se vender todos os seus ativos, ainda assim o país não consegue pagar a dívida pública. Para ele, a saída tem de ser pela via oposta, fortalecer os gastos públicos em detrimento do pagamento de juros.

“Os programas de transferência de renda custam muito menos do que o pagamento de juros e ainda colocam mais dinheiro dentro do país. Há uma diferença gritante do capital público dos países nos anos de 1970 e hoje. Enquanto antigamente ele era de 50% a 60% do capital total, hoje ele não passa de 30% e, muitas vezes, chega a zero”, criticou.

Porém, o economista deixa claro que o investimento em política de distribuição de renda não pode ser a única preocupação dos governos, que não devem abrir mão de oferecer serviços públicos de qualidade como educação, transporte e saúde. “Há um limite no dinheiro”, esclarece.

Desigualdade no Brasil`

Desde o início do governo Lula em 2002, o Brasil se orgulha de ser um dos países que mais teve sucesso no combate à pobreza e à concentração de renda. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a riqueza concentrada na mão dos 10% mais ricos no país caiu de 50% para 45% entre 2007 e 2013.

No último ano do primeiro mandato de Dilma, porém, a noticia não foi boa. De acordo com o índice de Gini, divulgado no último mês de setembro e que mede a desigualdade de renda, ela se manteve estável entre 2012 e 2013 pela primeira vez desde 2001.

O IPEA também confirmou, pela primeira vez desde 2003, que o número de miseráveis cresceu no país. Em 2012 eram de 10,08 milhões enquanto que no ano passado ele subiu para 10,42 milhões.

O Brasil não está na lista dos 20 países em que há dados confiáveis, de acordo com o livro de Piketty. Ele criticou a falta de transparência da Receita Federal nos dados sobre o Imposto de Renda e o método de fazer pesquisas domiciliares, como faz a PNAD, para chegar a conclusões sobre a concentração de renda.

“Se pegarmos as informações fiscais a que tivemos acesso, os números são bem maiores. Falta transparência da Receita Federal. Se você for levar em conta só as informações da PNAD, acaba olhando só para a renda do trabalho, virando as costas para a renda dos mais ricos, que estão concentradas em imóveis e ações”, explicou.

Piketty reforça o que foi feito no Brasil nos últimos anos, como a valorização real do salário mínimo e o Bolsa Família como positivo, mas analisa que a diminuição da pobreza não significa automaticamente que a renda está menos desigual.

As soluções que o professor vê para o Brasil não são diferentes do que para o resto do mundo. A taxação de renda na França, por exemplo, pode chegar a 75% para quem recebe mais de 1 milhão de euros por ano. No Brasil, a maior faixa do IR cobra 27,5%.

Isso significaria que o país poderia aumentar a arrecadação mesmo reduzindo impostos dos mais pobres, se criasse faixas superiores de cobrança. O problema da progressividade nos impostos também está na taxa cobrada sobre as heranças, segundo Piketty.

“A maior alíquota do Imposto de Renda no Brasil está em um patamar considerado baixo para os padrões mundiais, muito próxima da menor nos Estados Unidos. Precisa se criar uma faixa para quem ganha R$ 500 mil, R$ 600 mil, R$ 1 milhão por ano. Também tem o imposto sobre herança no Brasil, que é ridiculamente baixo. Na Alemanha, cobra-se 40%; nos Estados Unidos, cobra-se 40% e aqui, não passa de 4%. É preciso se discutir isso urgentemente”, finalizou.

Fonte: Bruno Pavan/Brasil de Fato

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