“Os agrotóxicos estão produzindo cada vez mais câncer e destruindo a biodiversidade”
É moderno um modelo de produção agrícola que expulsa as pessoas do campo para a periferia das grandes cidades, produz cada vez mais casos de câncer por causa do uso intensivo de agrotóxicos e que colabora para destruir a biodiversidade do planeta? Essa pergunta serviu de fio condutor à aula pública proferida na manhã de sábado (14), no Parque da Redenção, em Porto Alegre, por João Pedro Stédile, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A aula pública, realizada ao lado da tradicional feira de produtos agroecológicos da Redenção, foi uma iniciativa da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável, presidida pelo deputado estadual Edegar Pretto (PT), em parceria com movimentos sociais como o MST e a Via Campesina.
Stédile iniciou a aula pública fazendo uma contextualização histórica do surgimento desse modelo de produção. “Estamos vivendo um período muito difícil na história da humanidade. Da década de 90 para cá, o planeta foi reorganizado na sua economia por uma nova etapa da ordem capitalista marcada pelo domínio do capital financeiro e das grandes corporações. Hoje, cerca de 500 empresas dominam 60% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, sendo que 50 delas atuam no setor da agricultura. Nunca antes na história, toda a humanidade esteve sob o domínio de um único modelo como ocorre agora. O capitalismo financeiro tomou conta do planeta”, assinalou. É neste domínio, acrescentou, que devem ser buscadas as verdadeiras causas da crise econômica que o Brasil enfrenta agora.
Capitalismo sequestrou função social da agricultura
No plano da agricultura, disse ainda Stédile, o capitalismo financeiro sequestrou a principal função social dessa atividade, que é a produção de alimentos para a reprodução da vida humana. “O capitalismo sequestrou essa função e transformou-a em um mero mecanismo de apropriação de riqueza. Houve uma nova divisão internacional da produção agrícola. Um grupo de aproximadamente 50 empresas decidiu, por exemplo, que o Brasil deveria passar a produzir fundamentalmente soja, carne de gado, etanol e celulose. No Brasil, 85% das terras cultivadas, se destinam só a cinco culturas: soja, milho, pastagem, cana de açúcar e eucalipto. Cerca de 70 mil proprietários de terra fizeram uma aliança com essas empresas para implementar esse modelo. A Argentina, que no século XX chegou a ser chamada de celeiro do mundo, hoje só produz soja”.
Esse modelo hegemonizado por grandes corporações, apontou o dirigente do MST, realizou outros movimentos importantes. Um deles foi a padronização dos alimentos que foram transformados em mercadorias padronizadas. “Hoje, você vai em um supermercado em Pequim e ele é praticamente igual ao Zaffari”. Outro é a uniformização dos preços. “Marx até suspeitou que isso poderia acontecer, mas nunca na escala em que ocorreu. Ele escreveu no Capital que o preço das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-las. Ocorre que esses tempos de produção são diferentes dependendo das circunstâncias. O capitalismo uniformizou esses preços, que, hoje, são controlados por oligopólios. Ninguém mais sabe o valor exato das culturas do arroz, do feijão ou de outros alimentos. A safra de soja de 2019 já está vendida na Bolsa de Amsterdã a um determinado preço. Essa uniformização dos preços afetou a agricultura camponesa em todo o muno”, disse Stédile.
A dependência em relação aos bancos
O controle de toda a cadeia de insumos, da semente aos agrotóxicos, permitiu que essas empresas modificassem todo o processo de produção. Uma das características desse novo padrão é a produção na maior escala possível para ter lucro máximo. “Os fazendeiros brasileiros”, observou Stédile, “são obrigados a aumentar cada vez mais a sua área de produção, pois têm que dividir seu lucro com essas empresas e com os bancos que financiam os plantios”. “Cerca de 65% do custo da produção de arroz hoje é com agroquímicos fabricados por essas grandes empresas. Além disso, a dependência em relação aos bancos é total. Nenhum fazendeiro consegue produzir hoje com recursos próprios. E há um ilusionismo estimulado pelo governo quando diz que está disponibilizando tantos bilhões para a agricultura. Não é o governo que disponibiliza. Esse dinheiro que é emprestado pelos bancos sai das nossas contas correntes, sem que recebamos qualquer juro por isso”.
Outra marca desse modelo é a imposição de sementes transgênicas, combinada com os agrotóxicos correspondentes a elas. João Pedro Stédile contestou o discurso dos que definem a transgenia na agricultura como uma conquista da modernidade. “Nada mais atrasado que o capital impor a propriedade privada de sementes. Isso existe no Brasil porque, em 1995, o governo Fernando Henrique Cardoso aprovou a lei de patentes para organismos vivos, que abriu as portas para o patenteamento de sementes. Não há nada de moderno nas sementes transgênicas, nem do ponto de vista da produtividade. A Embrapa tem hoje variedades de soja que tem uma produtividade maior que a Roundup Ready, da Monsanto. Mas ninguém fala disso”.
A conexão entre agrotóxicos e câncer
Junto com os transgênicos veio o aumento exponencial do uso de agrotóxicos. Segundo Stédile, há uma falácia que segue sendo repetida diariamente e que afirma a impossibilidade de produzir sem agrotóxicos em um clima tropical. Pelo menos eles são didáticos, ironizou Stédile, pois batizam a semente com o mesmo nome do agrotóxico correspondente, como ocorre no caso da Roundup. Além disso, acrescentou, outra consequência grave desse modelo foi o uso de agrotóxicos como substitutos de mão de obra. “Nos últimos dez anos, 2,4 milhões e trabalhadores rurais perderam o emprego no campo. Foram substituídos pelo veneno. Esse é o cenário que temos”.
Mas, por mais que o capital seja hegemônico, disse Stédile, as suas práticas vêm alimentando contradições que levam a uma crise. A primeira delas, apontou, é que os agrotóxicos estão produzindo cada vez mais câncer. Em março deste ano, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou um artigo que sistematizou pesquisas sobre o potencial cancerígeno de cinco ingredientes ativos de agrotóxicos realizadas por uma equipe de pesquisadores de 11 países, incluindo o Brasil. Baseada nestas pesquisas, a agência classificou o herbicida glifosato e os inseticidas malationa e diazinona como prováveis agentes carcinogênicos para humanos e os inseticidas tetraclorvinfós e parationa como possíveis agentes carcinogênicos para humanos. Destes, a malationa, a diazinona e o glifosato são amplamente usados no Brasil. Herbicida de amplo espectro, o glifosato é o produto mais usado nas lavouras do Brasil, especialmente em áreas plantadas com soja transgênica.
A partir do levantamento publicado pela Iarc, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) divulgou uma nota oficial este ano chamando a atenção para os riscos que a exposição ao glifosato e a outras substâncias representam para a saúde dos brasileiros. Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos, o Inca cita, além do câncer, infertilidade, impotência, abortos, malformações fetais, neurotoxicidade, desregulação hormonal e efeitos sobre o sistema imunológico. O Inca e a Organização Mundial da Saúde estimam que, nos próximos cinco anos, o câncer deve ser a principal causa de mortes no Brasil. Stédile citou o caso da descoberta de glifosato no leite materno de mulheres residentes em Lucas do Rio Verde (GO), que foram contaminadas pelo glifosato presente na água da chuva.
O valor da encíclica Laudato Si
O uso de agrotóxicos, também apontou Stédile, está contribuindo decisivamente para a destruição da biodiversidade, com influência no clima. “O veneno destrói a biodiversidade. O Roundup destrói tudo, menos a soja. Não é preciso ser especialista para entender o que está acontecendo com o clima no Rio Grande do Sul. Estão plantando soja até em cemitério. A falta de água em São Paulo é outro exemplo e está ligada ao desaparecimento de rios e nascentes que abasteciam o sistema da Cantareira”.
Por fim, o dirigente do MST destacou que a recente encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, também faz parte dessas contradições inerentes ao atual modelo hegemônico. “A crise dentro da Igreja, que também está dominada pelo capital, acabou gerando esse novo papa. A encíclica Laudato Si é uma obra prima de causar inveja ao velho Marx. Todo militante socialista e revolucionário tem que ler e ter em casa esse livro. Nele, encontramos os fundamentos doutrinários que explicam porque a humanidade tem que se levantar contra esse modelo que ameaça e destrói a vida”.
Fonte: Sul 21/Marco Weissheimer