“A União tem uma dívida com a Previdência”, afirma especialista em direito previdenciário
No dia 19 de fevereiro, está prevista a votação da Proposta de Emenda a Constituição (PEC) 287/16, conhecida como Reforma da Previdência. Apresentada em dezembro de 2016, pelo deputado relator Arthur Oliveira Maia (PPS-BA), o texto sofreu modificações no decorrer das apreciações e teve nova versão posta em novembro de 2017. Também, a reforma sofreu significativo desgaste com as denúncias direcionadas a Temer, por organização criminosa e obstrução de justiça, ambas derrubadas pelo plenário.
Assim como a Reforma Trabalhista, aprovada em última instância em agosto de 2017, a mudança na legislação previdenciária é alvo de críticas e questionamentos por parte de advogados especialistas e também dos movimentos políticos e sociais de defesa da classe trabalhadora. Neste contexto, o Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas e Nova Santa Rita conversou com o advogado João Lucas de Mattos, especialista em direito previdenciário pelo escritório Woida, Magnago, Skrebsky, Colla & Advogados Associados, sobre os primórdios do sistema previdenciário no Brasil, as ações tomadas pelo governo Temer para aprovar e reforma e a expectativa do meio jurídico para a votação do próximo dia 20. Confira:
Sindicato: Como é possível resumir a criação do sistema de Previdência Social e seus objetivos junto à sociedade?
João Lucas: A Previdência surgiu na Alemanha, através do Otto von Bismarck e veio no sentido de proteger o trabalhador em relação ao acidente de trabalho e o risco social. Mas qual o risco social que eu falo? O risco social da idade avançada, de uma incapacidade pro trabalho. E no Brasil especificamente, a Previdência surgiu em 1923, através da Lei Eloy Chaves, que veio para atender a demanda do risco social e que trouxe alguns benefícios, como aposentadoria por idade, o seguro acidente de trabalho e pensão por morte, entre outros. Mas também surgiu em uma época de início dos contratos de trabalho e de uma industrialização no país. O trabalhador precisava a partir de então de uma assistência, e como o empregador não pagaria esse trabalhador em casa, surgiu esse formato de seguro, social, obrigatório e de caráter vinculado.
Mas o que eu quero dizer especificamente é que este sistema era setorizado. A Previdência surgiu por setores no Brasil. Existia a Previdência do industriário, dos correios, o funrural, que era o fundo dos aposentados, dentre outros. E em 1988 houve uma mudança e esses fundos privados foram unificados no INSS, criando o SUS. Antigamente a Previdência tinha o chamado INAMPS, que cobria o atendimento médico. Então 1988 nós temos essa ruptura, unificação, e o sistema passa a ser integrado, onde no SUS é feito o tratamento de saúde das pessoas, de forma universal, e o INSS atende os benefícios sociais como aposentadoria, os riscos sociais, o risco da morte para os dependentes, o risco da invalidez. Isso tudo a Previdência vem a resguardar.
Também na unificação do sistema se criou a Seguridade Social, que é dividida em Previdência e Assistência Social. A Previdência ficou a cargo do INSS e a assistência a cargo do Tesouro Nacional. Então o objetivo em síntese é cobrir o risco social. É um seguro público obrigatório, uma conquista voltada ao amparo dos trabalhadores.
Sindicato: Existe um entendimento de que a Previdência tem como objetivo arrecadar as contribuições e pagar os benefícios. No entanto, o Governo Federal tem direito em parte do orçamento, não?
João Lucas: Quando a Previdência surgiu em 1923, foi criado um fundo próprio que tem rubrica própria. Logo se começou a arrecadar valores, de empregadores e empregados, e o Governo era possuidor de parte desta arrecadação. Até meados de 1955 poucos eram os benefícios pagos, então o governo se deu conta que no caixa da previdência existia um montante elevado de recursos que, a princípio, não eram utilizados no pagamento dos benefícios. Era um dinheiro que estava capitalizado e na época eles não pensaram que aquele dinheiro era para subsidiar benefícios futuros. Nos arquivos do planalto e nos do INSS tem documentos que provam que a partir de 1955, no governo do presidente Juscelino Kubitschek, para a construção de Brasília, se utilizou uma rubrica da Previdência.
Mas também é importante saber que o orçamento público tem destinação própria. O dinheiro que está na Previdência, que tem gestão própria, é destinado ao pagamento de benefícios. É diferente de um tributo que se paga, como IPTU, IPVA, Imposto de Renda, que cai no Tesouro da União, do Estado ou do Município, e vai ser utilizado de qualquer forma, sem destinação específica. Então, já em 1955 esse dinheiro não poderia ter sido retirado sem a chamada desafetação, que só foi criada em 1998, através da Emenda Constitucional número 20, artigo 58 das disposições constitucionais transitórias, nomeada DRU (Desvinculação das Receitas da União). Em 98, eram 20%. Em 2015, o Michel Temer aumentou para 30%.
Logo, o primeiro momento de desvinculação da receita foi em 1955, com a construção de Brasília. Na década de 70, no governo militar, teve a construção de Itaipú, da Ponte Rio-Niterói e a Transamazônica. Todas são obras realizadas com o dinheiro da Previdência que hoje está fazendo falta. E cabe destacar que estes valores nunca foram repostos nos cofres da Previdência, então na verdade a União tem uma dívida com a Previdência.
E hoje, apesar de existirem tantas leis de regulamentação, ocorre essa mistura dos orçamentos, principalmente a partir de 2005, com a criação da Super Receita. A Previdência tinha um órgão específico que fiscalizava as receitas do INSS, que ia nas empresas, controlava as declarações. Já em 2005, foram unificadas a Receita Federal e as receitas do INSS, para formar um bolo só. Então a partir daí também se verifica a intenção da confusão patrimonial, da confusão orçamentária.
Hoje se fala muito em Reforma da Previdência, em déficit da Previdência, mas a gente parte do pressuposto de que se fossemos avaliar de forma isolada toda a gama de receitas que a previdência possui, tanto do empregado e do empregador, PIS, COFINS, as receitas das lotéricas, as receitas dos jogos de futebol, além da cota que o governo deveria pagar, nós teríamos um outro cálculo. A diferença fica se tem déficit ou não em relação aos meios de arrecadação, porque o governo calcula só receita e despesa, no sentido de empregado e empregador, quando deveria computar toda a malha que sustenta a seguridade social.
Sindicato: Levando em consideração a análise das receitas do sistema previdenciário, qual ou quais os fatores possíveis de se apontar para o grande interesse do governo em reformar a Previdência?
João Lucas: Aqui partimos de uma análise dos índices econômicos do Brasil e da maneira como o país atua no mercado. Segundo a ANFIP, 48% do orçamento da União é para pagar os juros da dívida pública, ou seja, o governo quando precisa de dinheiro, emite um título aos bancos. E esse título é resgatado depois de alguns anos com capitalização, juros. E pelo que se tem notícia, esse equilíbrio financeiro no Brasil inexiste, pois o país gasta mais do que arrecada. Então o Governo vê no orçamento da Previdência um montante para destinar a outros pagamentos.
Sindicato: Em relação às propagandas veiculadas pelo Governo Federal para que a população apoie o projeto de reforma. São, na sua visão, apelativas?
João Lucas: A propaganda está exagerada, tem um sentido apelativo. Mas se fosse só a apelação não seria tanto um problema como é a manipulação das informações. Eu vejo muita propaganda, na televisão principalmente, e noto muita desinformação dos próprios jornalistas. Por exemplo, quando falam no teto, muitos dizem que o trabalhador vai ficar com o teto, sendo que na verdade ele vai ficar com a integralidade do benefício, dependendo do caso. Outra questão é quando falam do adicional do tempo de contribuição, que na verdade não tem adicional algum, porque o governo já te retirou 30% da renda. Adicional seria se tu tivesse teus 100%, permanecesse trabalhando e ter o acréscimo. Então neste ponto há uma manipulação da notícia. Quando se fala dos privilégios também, acho que tem muito equívoco, porque é uma reforma que vai pegar todo mundo, vai mexer na idade, no tempo de contribuição, principalmente na fórmula de cálculo. Então eu acho que essas propagandas não cumprem o papel pedagógico e educador que deveriam cumprir.
Sindicato: Na atuação jurídica, quais pontos da reforma trarão maior dificuldade?
João Lucas: Nós, advogados, vamos ter alguns problemas. O primeiro deles é a unificação da aposentadoria por tempo de contribuição e aposentadoria por idade. Vai ser uma aposentadoria híbrida, como havia em 1923 na primeira regra de aposentadoria do regime brasileiro. Mas acredito que a dificuldade maior vai ser a regra de transição, pois não se vê uma regra clara. Não se sabe se vai aumentar o tempo e também ir aumentando a idade. Se o tempo vai aumentar na contribuição, como fica a regra de transição na idade? A cada dois anos vai subir um ano na idade? No tempo, vai subir 30% de pedágio, então tu cumpre o tempo que falta e mais os 30%? Veja, não são claras, transparentes.
O direito adquirido permanece. A lei do tempo vai reger o ato, ou seja, quando o trabalhador prestou determinado serviço de acordo com a insalubridade do período é o que vale. Mas as regras de transição serão um problema sério. Muitas vão depender de normas complementares, regulamentação por parte do INSS. Então, muitas dúvidas vão pairar neste aspecto na hora dos encaminhamentos.
Sindicato: É possível afirmar que apesar da Reforma Trabalhista ter gerado mudanças significativas na legislação trabalhista, ela necessita da aplicação por parte do empregador. Já a Reforma da Previdência não tem esse tipo de relação. Isso a torna mais emergente?
João Lucas: Pra se ter uma ideia, o Código Civil que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2003, tramitou no Congresso Nacional por 25 anos. Ele teve aplicação imediata apesar de ser uma regra de direito material, não dependendo da aplicação de ninguém, porque a princípio são regras de convívio. Já a Reforma Trabalhista foi aprovada de uma forma sorrateira e rápida. Trouxe mudança profunda nas relações trabalhistas, uma negativa de direitos onde pegaram súmulas favoráveis aos trabalhadores e negaram. E veja, não deram uma regra de transição, um período de vacatio legis maior para a adequação das empresas, para se ter uma segurança jurídica maior. O próprio judiciário não sabe como trabalhar com isso. Nós sabemos que questões processuais têm aplicação imediata, mas o direito material não.
Agora, a regra previdenciária eu acredito que é diferente. Ela não vai precisar que alguém cumpra a lei. Ela vai exigir o cumprimento direto, isso é certo. Ela não vai ter também um prazo de vacatio legis grande. No momento que ela for aprovada, vai começar a valer. E terá regras de transição justamente para adequar os casos. E é importante destacar aqui que direito adquirido em matéria previdenciária é quando o trabalhador incorporou seu patrimônio jurídico, o tempo de contribuição ou a idade e o tempo para encaminhar o benefício. Se for aposentadoria por tempo de contribuição, ele adquiriu o direito quando ele preencheu todos os requisitos para a concessão do benefício, seja aposentadoria especial, seja por tempo de contribuição ou seja por idade. Agora, se ele está na expectativa do direito, se ele ainda não preencheu todos os requisitos para concessão do benefício, ele cai na regra de transição, que como dito antes, não é clara.
Sindicato: No próximo dia 20 de fevereiro está prevista a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Qual o sentimento do meio jurídico?
João Lucas: Tenho conversado com colegas e observado o momento do Congresso e é possível verificar que nessa composição atual, do governo, se tem um interesse profundo na aprovação. Vem de um compromisso que ele tinha com a bancada que o apoiou. Mas nós não vemos isso com bons olhos, por mais que estejamos constantemente conversando com os trabalhadores, pedindo que acompanhem seus deputados nesta votação.
Nós temos medo do troca troca em relação à Reforma. Acredito que vai haver muita troca de favores, muita compra de deputados. Neste aspecto, acredito que pode passar a reforma, mas terão mais emendas e adequações, que serão as justificativas de quem votar a favor.
Eu noto que tem muitos favoráveis que utilizam a questão do déficit e a própria propaganda já diz que se você quer se aposentar, tem que garantir a reforma. Então eles estão trabalhando com este mecanismo e acredito que não é uma forma transparente de reforma. Porque uma reforma da Previdência tem que ser debatida, estudada. É preciso saber os números com clareza, para se saber o que será modificado. Então quando não se tem essa clareza, não se tem um texto sem obscuridades, acredito que fica difícil. Mas levando em consideração esse interesse absurdo do governo, essa pressão nos deputados em fazer levantamento de quem vota a favor e quem vota contra, de fazer retaliações de quem não acompanha, cortando benesses, se torna bem difícil de não passar.
Sindicato: E em relação a pressão popular, às mobilizações convocadas pelos partidos contrários e às centrais sindicais. Deve funcionar?
Neste aspecto, acredito sim que a pressão acontecendo, em cima dos deputados, Brasília cheia no dia da votação, tem um poder efetivo em relação à obstrução do projeto. E penso isso porque a reforma trabalhista abarcou todo mundo, todo o regime privado. A previdência é mais ampla, porque pega o servidor público, o privado, o aposentado e quem está prestes a se aposentar. E se os trabalhadores tiverem mais clareza sobre o que terão, acredito sim na possibilidade bem elevada de pressão popular, ainda mais considerando um ano eleitoral. A gente tá na verdade em uma berlinda, em uma encruzilhada, sem saber pra que lado vai pender. Mas com pressão popular ainda é possível reverter.
Fonte: Rita Garrido / STIMMMEC