A exemplo de Temer, Bolsonaro propõe ajuste aos trabalhadores e perdão a empresários
Ex-presidente fez com que o país abrisse mão de R$ 47,4 bilhões relativos a dívidas de 131 empresas devedoras
Dez dias antes da posse, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) sinalizou a interlocutores que pretendia perdoar R$ 17 bilhões em dívidas de empresários ruralistas aos cofres públicos. Em paralelo, propôs cortes na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), foi favorável ao congelamento de investimentos sociais por 20 anos, pretende aprovar a reforma da Previdência e diminuir os "gastos" do Estado em todas os setores. De maneira geral, repete a cartilha adotada por Michel Temer (MDB) desde o segundo semestre de 2016.
O último Programa de Recuperação Fiscal (Refis), implantado durante o governo Temer, fez com que o país abrisse mão de R$ 47,4 bilhões relativos a dívidas de 131 empresas que devem dinheiro à União. O montante é o maior dos últimos dez anos, segundo levantamento publicado nesta segunda (21) pelo jornal O Estado de São Paulo, a partir de dados oficiais do programa.
O Refis corresponde à regularização de dívidas de pessoas físicas e jurídicas. A medida inclui tributos e outras contribuições cuja arrecadação é de competência de órgãos federais, como o INSS, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e a Receita Federal.
Além de perdoar o referido montante em dívidas, Temer facilitou o pagamento do restante devido pelas 131 empresas, que corresponde a R$ 59,5 bilhões, em até 175 parcelas.
O programa do emedebista foi lançado em janeiro de 2018 e convertido em lei em outubro do mesmo ano, após intensas articulações e barganhas com parlamentares em prol da aprovação da reforma da Previdência. A proposta, apesar disso, acabou engavetada, por conta da falta de apoio majoritário na Câmara dos Deputados, resultado da forte oposição popular à medida.
A especialista em desenvolvimento econômico Grazielle David, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), destaca que a questão do Refis está associada à lógica da sonegação fiscal, marcante na história do país.
Do ponto de vista legal, o cenário da sonegação de impostos encontra referência na Lei Federal 9.249/1995, que possibilitou a extinção da punibilidade para quem comete crime tributário. Na prática, o dispositivo inviabilizou a Lei 8.137/1990, que criminaliza condutas como a sonegação.
A legislação de 1995 foi aprovada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), um dos períodos de acentuação do liberalismo econômico e das medidas de austeridade no Brasil. Por conta disso, o Brasil é apontado mundialmente como um dos países que menos punem devedores do fisco.
Grazielle David destaca que os atores beneficiados por programas como o Refis, em geral, têm um perfil conhecido.
“São grandes corporações, com capacidade financeira para contratar importantes escritórios de contabilidade, que realizam planejamento tributário agressivo, que sonegam bastante no país, não são punidas e são beneficiadas com o Refis. Essa é a lógica de negócio”, explica a pesquisadora do Inesc.
Prejuízos
Ela explica que esse tipo de medida traz muitos prejuízos. De um lado, afeta ainda mais a saúde da economia nacional porque, ao favorecer as grandes corporações, o governo acaba incentivando a concentração do mercado. Com isso, pequenas e médias empresas saem perdendo, uma vez que o mercado é balizado pela concorrência.
De outro lado, prejudica ainda mais a arrecadação. Segundo dados do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), a sonegação no Brasil chega a R$ 450 bilhões por ano, o que corresponde a 23% da arrecadação tributária total.
Com um montante menor de impostos recolhidos, o cenário dos investimentos públicos, especialmente os da área social, também tende a piorar. Além disso, a baixa na arrecadação acaba sendo utilizada como argumento pelos governos interessados em implementar políticas que atendam à cartilha neoliberal.
O Refis do governo Temer, por exemplo, foi implantado no momento em que o país iniciou o maior ajuste fiscal da história, com a entrada em vigor do Teto dos Gastos. A medida, proposta pelo ex-presidente e aprovada pelo Congresso Nacional em 2016, congela os investimentos públicos em áreas sociais durante 20 anos.
Grazielle David destaca que a coexistência de medidas dessa natureza é característica de governos neoliberais, que investem em arrochos fiscais na área social, ao mesmo tempo em que perdoam montantes devidos por grandes empresas.
“[O valor de] R$ 450 bilhões é quatro vezes o orçamento atual da Saúde, por exemplo”, destaca Grazielle David.
Neoliberalismo
O professor Francisco Tavares, do Curso de Ciências Políticas da Universidade Federal de Goiás (UFGO), aponta que, para entender a lógica neoliberal que se intensifica no país, endossada também pelo governo Bolsonaro, é preciso mergulhar nos aspectos que marcam esse tipo de política no mundo.
Do ponto de vista conceitual, Tavares destaca que o neoliberalismo carrega algumas características fundamentais. Uma delas está, por exemplo, no campo das ideias.
“É um projeto de grandes empresários transnacionais que pretende manter o mercado com a menor regulação possível e transformar o maior número de esferas da vida humana em algo que possa ser apreciado economicamente, ou seja, desde o sentimento, a cultura, até a rotina dos seres humanos. Tudo isso tem que ser transformado em rentabilidade”, explica.
Para ampliar as fronteiras de mercado e os lucros, o sistema neoliberal, especialmente no atual contexto, é marcado, entre outros aspectos, pela prevalência dos interesses dos grandes negócios sobre a cartilha popular.
Para colocar em prática esse ideário neoliberal, o sistema conta com alguns agrupamentos de interesse que orbitam em torno das políticas dessa natureza.
Francisco Tavares destaca que há três grupos principais, reunidos no que ele chama de “classe capitalista transnacional”: o setor financeiro, materializado pelos bancos e outras instituições de crédito e negócios; os latifundiários, que concentram as terras e a exploração dos recursos naturais; e grandes empresas que, cada vez mais, reduzem o trabalho humano à ideia de um ativo, dentro de uma lógica de precarização da atividade para ampliação dos lucros.
“Hoje existe, portanto, uma classe que se organiza mundialmente – está reunida, neste momento, na Suíça [no Fórum Econômico Mundial] – e que defende seus interesses, que disputa [espaço]. Não tem nada de natural no mercado. São grupos muito bem organizados ao redor [dos temas] natureza, trabalho e finanças”, finaliza Tavares.
Fonte: Brasil de Fato