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27.07.20   |   Geral

A sobrecarga de tarifas na vida do povo brasileiro

Reprodução Le Monde

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Três coordenadoras nacionais do Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB) apresentam, neste segundo artigo da série sobre o novo marco legal do saneamento, os riscos da mercantilização da natureza, sinalizada pela recém sancionada Lei 14.026/20, e desmitificam o discurso da melhoria ou ampliação dos serviços de saneamento

O Brasil é um dos territórios com maior riqueza hídrica no mundo (13% do total do planeta),[1] detentor de grandes bacias hidrográficas como Amazonas e São Francisco e possuidor dos maiores sistemas de aquífero no mundo, com reservas estimadas em 112 bilhões m³. Por isso está como zona estratégica de controle da água no mundo e vem sendo foco da pressão pela privatização. O avanço da mercantilização da natureza e a comodificação da vida têm se constituído como um elemento estrutural no capitalismo. No caso brasileiro, essa lógica se aprofunda a partir do golpe de 16, atrelada ao processo de desmonte e deterioração dos serviços públicos com a ampliação da agenda neoliberal marcada pela mercantilização e pelas políticas de austeridade.

Sob o comando de grupos econômicos transnacionais que, em meio à crise econômica mundial, buscam expandir seus interesses e redefinir mercados, essa estratégia tem como objetivo criar diversas oportunidades para o capital a partir da apropriação privada da água. Entre os principais negócios previstos estão: mercantilização do saneamento (distribuição de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e resíduos sólidos) a partir da criação de um modelo privado para o setor (Lei 14.026/2020) e a total financeirização das águas com a criação do “mercado das águas” em bacias hidrográficas, contemplada no Projeto de Lei 495/17, que prevê a compra e venda de outorgas de uso entre usuários de uma bacia. Nessa lógica, a água deixa de ser um direito e passa a ser um negócio ligado a uma cadeia de produção global.

Não há dúvidas de que a recente aprovação da Lei 14.026/20 tem como pano de fundo a viabilização desses negócios no setor de saneamento. Tanto que a primeira aprovada na nova legislação é a fragmentação e o recortes das águas para facilitar a privatização. Estamos falando de uma estrutura pública de saneamento que corresponde a 57 milhões de ligações de água, 630 mil km de redes de água instaladas, 300 mil km de redes de esgotamento, 220 mil trabalhadores e uma movimentação de R$ 110 bilhões por ano.[2]

Analisado em sua totalidade, o novo marco viabiliza a estruturação de um modelo privado para o setor de saneamento bem parecido com o atual setor elétrico. Em vez de atuar sob diretrizes que garantem o funcionamento de, entre outros, serviços de distribuição de água e esgotamento sanitário como política pública do Estado, assegurando qualidade e ampla oferta, como querem nos fazer acreditar, o setor passará a ser desenhado segundo um novo modelo de organização que terá como predominante a atuação de empresas privadas regidas pela lucratividade. Desse modo, tenta-se construir um arranjo rentável no modelo de tarifas, na forma de regulação e nos contratos de concessão.

O mercado da água a ser instalado com esse modelo tem como objetivo impor uma forma de organização que atenda aos interesses do capital financeiro. A característica principal dessa nova organização, à qual a Lei 14.026/20 dá início, é o fracionamento em vários segmentos de negócios para reduzir o tempo de rotação do capital, aumentar a extração de valor e facilitar a especulação, garantindo ganhos a toda cadeia produtiva envolvida: donos da concessão, fornecedores, grandes compradores, seguradoras e certificadoras, os governos, e especialmente aos financiadores. A água se transforma, assim, na principal mercadoria e o ganho é sustentado pelas tarifas finais que a população pagará.

Na lógica da privatização dos serviços de saneamento, os investimentos necessários previstos para atingir as metas de saneamento universal, em torno de R$ 700 bilhões nos próximos quinze anos, na verdade, serão pagos com dinheiro do povo. Assim como outros setores de infraestrutura, grande parte dos financiamentos são obtidos por meio de créditos que também poderiam financiar as iniciativas públicas, como os financiamentos disponibilizados pelo BNDES. Já o retorno desses investimentos, que agora passam a operar na lógica do lucro, sairão do bolso de milhões de trabalhadores por meio da tarifa, pois é assim que funciona o regime tarifário em um modelo privado.

A nova metodologia que será definida para a tarifa é aquela que se autofinancia, a mesma praticada no setor elétrico, por meio da Aneel, onde o custo de produção da energia elétrica é um dos mais baixos, muito embora pagamos todo mês uma das tarifas mais caras do mundo, como se tivéssemos produzindo energia sob fonte termelétrica. Assim também está previsto para acontecer no saneamento.

Um dos papéis da ANA, como a nova reguladora nacional do saneamento, será este, de definir uma metodologia de tarifa a ser aplicada nas contas de água. Segundo esta mesma lei, novas taxas também deverão ser cobradas na tarifa de água, como as taxas pelos serviços de esgotamento sanitário e pelos serviços de limpeza urbana, que passarão a ter novos custos, segundo a lógica da lucratividade. Todas essas novas tarifas serão aplicadas na conta de água do povo brasileiro, o que poderá significar grandes tarifaços em poucos anos, como ocorre hoje na conta de luz, e nas experiências de privatização da água de alguns estados, como Tocantins.

O acesso estará condicionado à capacidade de renda das famílias para arcar com as altas tarifas, inviabilizando o acesso à água como um direito fundamental. Hoje, segundo dados oficiais, quase metade da população brasileira não tem acesso à rede de esgotamento sanitário. No novo marco está previsto, a partir de 2022, a possibilidade de cobrança de novas tarifas pelo serviço de saneamento, como a limpeza urbana, os resíduos sólidos, sujeitando a população ao pagamento de tais taxas mesmo sem o acesso integral a redes de esgotamento sanitário, por exemplo.

A Lei 14.026/20 faz parte dos “vários negócios” do “mercado das águas” que serão organizados em projetos de empreendimentos independentes, entre os quais podem-se verificar: negócios como produtor de água (gestão de bacias hidrográficas), distribuição de água (abastecimento à população), coleta de água (esgotamento e tratamento sanitário), transmissão de água (canais, sistemas de tubulação), comercialização de água (excedentes) etc. Esses negócios passam a ser organizados com mecanismos e lógica do capital financeiro, do qual se destaca o papel do Banco Mundial na modelagem, um dos principais impulsionadores da estratégia do sistema de tarifas. A sujeição como uma commodity internacional da água faz com que a mesma esteja submetida à lógica especulativa internacional, na qual a composição tarifária não dependente exclusivamente dos custos de produção nacionais, pelo contrário, está atrelada ao preço da mercadoria no mercado internacional, exatamente como a energia hoje na vida do povo brasileiro. No caso da energia, estão previstas três formas de aumento nas tarifas: reajustes, revisão periódica e revisão extraordinária, sendo as tarifas finais, a que pagamos, o somatório de todos os valores, que não aparecem de modo claro nas contas da população.

Essa nova lei é o primeiro passo para a totalidade da privatização da água no país. Vendido sob esse modo segmentado de negócios, oculta o aprofundamento do processo de mercantilização da natureza no país, e invisibiliza os problemas sociais decorrentes da financeirização dos bens comuns. A privatização é uma falsa solução para os problemas sociais decorrentes do saneamento básico, à medida que a universalização do serviço continuará dependendo do financiamento e do interesse público. De outro lado, a lógica privada de gestão da natureza não permite compreender a totalidade dos fluxos naturais hídricos e, portanto, não responde às questões ambientais, como escassez e enchentes, decorrentes da gestão e do uso das águas.

Esses fatos nos levam a crer que o pacote de PLs e a lei aprovada para o tema estão longe de dar respostas à dimensão socioambiental. São apenas negócios para lucratividade de grandes grupos econômicos, dentre eles, possivelmente, Ambev, Equatorial Energia, Suez, Veolia, Aegea, BRK Ambiental, Águas do Brasil, Coca-Cola, BTG Pactual, Itaú e Banco Mundial, em conluio com o governo federal e frações da burguesia interna brasileira, que atuam sob a orientação política da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Lembrando que, no final de 2017, meses antes de acontecer a 8ª edição do Fórum Mundial da Água, no Brasil, a OCDE publicou um documento denominado “Cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil: caminhos a seguir”, orientando à privatização da água em nosso país.

Após ocorrer a privatização da grande maioria dos serviços de saneamento e de algumas companhias estatais, abre-se o mercado brasileiro para a entrada de empresas na privatização de bacias hidrográficas, na compra dos aquíferos, na venda da transposição do Rio São Francisco, na aquisição do “excedente” de água dos lagos de hidrelétricas não utilizada para geração de energia, presentes no PL 495/17. Todas essas iniciativas criam obstáculos para a efetivação do acesso à água como um direito, visto que o condicionam à disponibilidade do bem dentro dos interesses do mercado. Não há garantias de tarifas sociais e de disponibilidade do serviço em zonas não lucrativas, entre outras.

Dessa forma, a lei altera profundamente a prestação do serviço de acesso à água e saneamento da população brasileira. É importante recordar as experiências históricas de privatização da água no Brasil e no mundo: elas têm se demonstrado desastrosas, ineficientes e altamente custosas à população. São criadas altas tarifas, zonas de exclusão pela inviabilidade da rentabilidade na prestação do serviço, como zonas rurais e áreas periféricas, que no atual modelo são garantidas por serem obrigações do Estado. Além disso, são acompanhadas da demissão de diversos trabalhadores, da precarização do trabalho e da perda de direitos trabalhistas. Há uma interferência na produção de alimentos quando camponeses não têm acesso à água, além da contaminação das águas por venenos e resíduos industriais decorrentes da problemática da distribuição das outorgas, igualmente tratada no novo marco. Também não resolve a questão da escassez e do rodízio de fornecimento. Por esses fatores, países, regiões e cidades que viveram a experiência da privatização estão revertendo os processos para controle público.

Na declaração final do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), em 2018, os representantes brasileiros enunciaram em sua carta final “somos guardiães das águas”, expressando suas múltiplas relações de uso com elas. Não podemos construir um país que, além de conviver com a fome, conviva com a sede. Precisamos garantir o acesso à água como um direito humano, e não como mercadoria. Para isso, é necessário defender a soberania e o controle popular sobre esse patrimônio que é de todo povo brasileiro. Somos e devemos ser como água, fortes, alegres, transparentes e em movimento. Águas para a vida, não para a morte!

 

Anna Carolina Galeb, advogada, membro da Coordenação Estadual do Movimento dos Atingidos e das Atingidas por Barragens (MAB) em Minas Gerais, e pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

Dalila Calisto, pedagoga, atingida pela barragem Castanhão/CE, membro da Coordenação Nacional do MAB, vive atualmente no Piauí. Mestranda em Geografia – Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pelo Ippri/Unesp.

Tchenna Maso, advogada, membro da coordenação nacional do MAB. Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pelo PPGD/UFPR, mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais pelo Ical/Unila. Pesquisadora de direito socioambiental junto ao Núcleo Ekoa.

[1] Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil 2012. Agência Nacional de Águas, 2012.

[2] SNIS. Dados de Saneamento, 2018. CERVINSKI, Gilberto & CALISTO, Dalila. O contexto da ofensiva para privatização da água, MAB, 2017.

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Saneamento básico é condição mínima de dignidade e saúde. Parceria do Diplo Brasil com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, esta série visa a colaborar com o debate sobre o novo marco legal do saneamento básico. Especialistas de diversas áreas evidenciam as implicações sociais, de saúde pública, jurídicas, econômicas e ambientais da gestão de água, esgoto e destinação do lixo urbano. Neste momento em que a pandemia ressalta a crise civilizatória que vivemos, o acesso à informação é essencial à transição para sociedades sustentáveis.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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