Condomínio e arquipélago de governos mortos-vivos


O golpe de 2016 que retirou a presidenta Dilma interrompeu o ciclo político da Nova República assentado no acordo social da Constituição de 1988 e propulsor de estabilidade na alternância de governos e no presidencialismo de coalizão. Quase três anos depois, o Brasil encontra-se órfão de credibilidade na política e suas instituições, esgarçada pela escassa mediação de anseios emergentes da sociedade de serviços e modos antiquados do estrato dirigente.

O que se percebe, a partir de então, tem sido o avanço da profunda instabilidade política, geradora de uma espécie de "governos mortos-vivos". A começar pelo fato de que Temer, exatamente um ano após a derrubada de Dilma (em maio de 2016), entrou gradualmente em estado vegetativo diante do escândalo gerado pelas denúncias do dono do frigorífico JBS, em maio de 2017.

Até então, a presidência de Temer parecia deter algum grau de coordenação política no âmbito das funções que exercia, equivalendo às de uma espécie de síndico do condomínio constituído por distintos interesses em derrotar o conjunto de políticas dos governos do PT. Mesmo com a aprovação da "reforma" trabalhista no Congresso alguns meses depois, o governo Temer ficou cada vez mais acuado, esperando o tempo passar até as eleições de 2018.

Em síntese, os 31 meses ocupados por Temer na situação de presidente da República, podem ser repartidos em somente 12 meses em que seu governo esteve "vivo" (maio/2016 a maio/2017) e os 19 meses restantes que equivaleram à condição de "governo morto-vivo".

Essa ausência de protagonismo governamental por longo tempo determina a paralisia em torno do projeto de nação enquanto se consolida uma precária sociedade de serviços frente ao aprofundamento da desindustrialização. O que tem sobrado é o processo de extorsão do patrimônio nacional por iniciativas de rapinagem por interesses escusos contra a população, motivado pelo vácuo aberto no estrangulamento do ciclo político da Nova República.

Mesmo com as eleições realizadas no ano passado e a posse do presidente eleito recém-efetivada, já se sinaliza que a condição de "governo morto-vivo" pode se fazer presente em prazo recorde no país, inferior ainda aos 12 meses experimentados por Temer, que ocupou sem voto o Palácio do Planalto. Em grande medida porque o governo Bolsonaro não conseguiu sequer estabelecer as funções de síndico da espécie de condomínio de interesses convergentes, outrora exercido por seu antecessor.

O que se observa até agora é que a montagem do atual governo se assemelha mais a imagem do "arquipélago de um conjunto de ilhas autônomas" que opera isoladamente enquanto feudo na defesa dos seus interesses particulares e mais imediatos possíveis. Sem o exercício da coordenação do conjunto do arquipélago, a vivacidade das partes "de ilhas" não assegura, por si só, a condição de "governo vivo".

Com a difusão dos escândalos de denúncias que atingem a família Bolsonaro, se prevalecer, de fato, a imagem do "arquipélago de ilhas autônomas", o insucesso tende a ser revelado muito proximamente, inclusive com o descasamento na formação das mesas diretoras do poder Legislativo (Câmara dos deputados e Senado).

 

Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas

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