A CRISE TERMINAL DO NEOLIBERALISMO E SEU SIGNIFICADO


André Luís Forti Scherer*

O neoliberalismo – entendido como um conjunto de idéias concebidas com o objetivo de restaurar o poder econômico e político das frações mais ricas dentre os ricos do mundo capitalista, ou seja, um episódio crucial da luta de classes contemporânea – encontra-se em crise terminal.

Trata-se, sem dúvida, de uma excelente notícia. Mas ela traz consigo um problema: a incapacidade da esquerda mundial e brasileira para perceber o momento político no qual estamos entrando e suas potencialidades. Marcada pela derrota acachapante do passado, desmontada em seus sonhos e ilusões, a “nova esquerda” quer apenas afirmar-se como “responsável e democrática” aos olhos da burguesia e “boa gestora” aos olhos da população.

O debate político desenvolve-se no campo escolhido pela burguesia, predominando as questões ligadas à segurança (pessoal e patrimonial) e à “educação para a empregabilidade”; à ridícula possibilidade da “defesa do meio-ambiente dentro do capitalismo”, à possibilidade da “responsabilidade social das empresas”, etc...

A questão crucial de qualquer plataforma de esquerda “como transferir renda e poder das frações mais ricas para as mais pobres, ou seja, da burguesia para os trabalhadores?”, ou, mais contemporaneamente, “como fazer a luta de classes de modo a inverter a lógica neoliberal?”, fica perdida em face ao desejo inconsciente de ser aceita como “confiável” pela burguesia e seu espelho midiático.

Mas teremos nós qualquer obrigação de sermos “responsáveis e confiáveis” para com nossos inimigos em um momento em que eles mesmos se questionam duramente sobre sua própria responsabilidade face ao desastre que construíram?

Uma breve retrospectiva nos auxiliará a compreender em que quadra histórica nos encontramos e por quê o momento é de retomarmos a agressividade e focarmos nas debilidades explícitas do inimigo, sob pena de perdermos uma oportunidade histórica inigualável nos últimos 30 anos.

A longa agonia do neoliberalismo e sua crise terminal

A marcha triunfante da idéias liberais, que se inicia ao final da década de 1970, teve seu auge na primeira metade dos anos 1990. A idéia afirmada por Thatcher de que não havia alternativa frente ao desmanche do Estado havia percorrido o mundo e se afirmado não apenas nos EUA e na Inglaterra, mas também na construção da União Européia, no Japão e em países periféricos da América Latina, incluindo México, Uruguai, Argentina e Brasil.

A privatização dos serviços públicos abriu novas áreas de acumulação ao capital e a globalização financeira integrou os mercados mundiais de modo instável. As empresas multinacionais passaram a ter como objetivo a “criação do valor para o acionista” e, ao mesmo tempo em que expandiram suas atividades pela aquisição de empresas ao redor do mundo, concentraram mercados e reduziram investimentos “produtivos”.

O crescimento da produtividade não foi acompanhado pelo crescimento dos salários, mas o consumo manteve-se elevado pela expansão das atividades financeiras e as novas formas de crédito que se tornaram disponíveis. Em termos da luta de classes, tratava-se do “crime perfeito”: o que não se pagava em salários compensava-se em oportunidades de endividamento, ou seja, os credores – os mais ricos dentre os ricos – reforçavam sua riqueza enquanto uma economia liderada pelo consumo podia prosseguir em trajetória de crescimento.

Não é de espantar que a renda dos 30.000 indivíduos mais ricos dos EUA tenha crescido quase cinco vezes entre 1983 e 2004, ao mesmo tempo em que o 1% mais rico da população abocanhava cerca de 20% da renda do país. Obviamente, entre 1974 e 2004 a renda dos 20% mais pobres cresceu apenas 2,8% nos EUA. Esse é o resultado da luta de classes empreendida pela alta burguesia daquele país e consusbstanciada no neoliberalismo, expresso em números.

Na Ásia o neoliberalismo também havia feitos progressos, embora as resistências fossem mais efetivas. E é naquele continente que vai se localizar o grande abalo na hegemonia neoliberal. A crise “contagiosa” de 1997 que sacudiu Tailândia, Coréia, Malásia, Filipinas e Indonésia desnudou a fragilidade e os riscos dos fluxos financeiros internacionais, deixou perplexos os mandatários mundiais – a região era o exemplo dos efeitos positivos da globalização – e teve dois desdobramentos essenciais.

O primeiro, ideológico, deu substância às resistências que derrotaram o Acordo Multilateral de Investimentos proposto pela OCDE e que liberalizaria a internacionalização dos serviços (educação, saúde) no mundo. Ao mesmo tempo, essa derrota forjou a unidade das lutas face à globalização financeira e a busca de alternativas que se consubstanciaram no Fórum Social Mundial. Em grande parte, esses movimentos não teriam a amplitude que tiveram sem o exemplo da crise asiática como suporte.

O segundo, econômico, colocou a China em posição central naquele continente. O governo chinês, ao manter a taxa de câmbio de sua moeda, foi essencial para estancar a crise e permitir a estabilização das moedas dos países vizinhos. Isso tanto estreitou suas relações com os EUA quanto permitiu a integração da produção continental tendo por centro a China.

O deslocamento da produção ocidental em direção à China intensificou-se, e as compras chinesas de máquinas e insumos industriais de seus vizinhos também, tendo os EUA como destino final de grande parte da produção. Esse movimento deu um papel produtivo à “periferia esquecida” do mundo capitalista dominado pelas finanças: a América Latina e a África, a partir de 2002, passaram a fornecer mais intensamente matérias-primas ao gigante chinês – a periferia mundial atrela-se a um centro regional, mas periférico frente á EUA, Europa e Japão –, ao mesmo tempo em que os preços dos produtos primários dispararam. A globalização produtiva tornou-se “global” e os países da periferia puderam solucionar seus problemas de falta de divisas e elevarem suas taxas de crescimento.

A nova força da China como elemento central da globalização capitalista introduziu um corpo estranho ao esquema de ajustes preconizado pelo neoliberalismo. A China manteve sua taxa de câmbio fixa frente ao dólar, mesmo enquanto acumulava elevadas reservas naquela moeda, ou seja, não valorizava sua moeda frente ao dólar conforme os ditames do neoliberalismo.

Os demais países da região, fornecedores da China, escaldados pela crise anterior, também optaram pela elevação de suas reservas e um câmbio desvalorizado. Enquanto isso, os EUA aprofundavam seu endividamento frente a esses países e relançavam sua economia com base no setor imobiliário e baixíssimas taxas de juros.

A renda das famílias era complementada pelo crédito concedido com base no avanço dos preços dos imóveis. Para impedir o rápido desinflar dessa “bolha”, os empréstimos concedidos passaram a embutir cada vez menores garantias e pagamentos iniciais mais baixos.

Entretanto, a inevitável queda nos preços dos imóveis iniciou-se ainda em 2005. Dado o volume e as características dos créditos concedidos, bem como sua importância para o crescimento do consumo nos EUA naquele período, tornou-se evidente que essa crise tomaria proporções gigantescas.

Em agosto de 2007, a crise emanada da crescente inadimplência nos pagamentos das hipotecas atingiu fortemente o setor financeiro dos EUA e da Europa. Essa não é apenas uma das crises da globalização financeira. Essa é “A” crise da globalização financeira e, portanto, a crise terminal do neoliberalismo.

Trata-se de uma crise sistêmica (ao envolver bancos, bancos de investimento, agentes financeiros não-bancários, agências de classificação de risco) que acaba por perturbar de modo definitivo a ordem institucional criada a partir dos anos 1980.

Os fundamentos ideológicos da não-intervenção estatal e da regulação econômica pelo mercado estão sendo desmentidos todos os dias, na prática, pelos fatos e pelos atos dos governos que tentam evitar uma catástrofe que tem potencial para levar o mundo capitalista a uma depressão ainda pior que àquela de 1930. Ou seja, ainda que as conseqüências da crise em termos econômicos, dada a resposta dos governos – em especial do Banco Central dos EUA, o FED – não seja tão terrível quanto à experiência anterior (o que é duvidoso), a perda de legitimidade ideológica das “soluções de mercado” é um fato sem retorno. Parafraseando Thatcher 30 anos depois, “no livre mercado não há alternativa”.

Outra das características da atual crise financeira é sua lentidão. Por isso, somos tentados a perceber pela apresentação midiática dos fatos – fragmentada, parcial e reduzida – que não há nada de muito importante acontecendo nesse front. Não devemos esquecer que a mesma mídia nos dizia há uma no tratar-se de uma crise imobiliária de pequenas proporções localizada nos EUA.

Um evento passageiro. Hoje, não é mais possível tratá-la dessa forma, afinal, passado um ano a situação apenas se agravou. Mas há agora um esforço para localizá-la “apenas” no sistema financeiro, como se o crescimento e o emprego fossem somente fracamente afetados. Realmente, a progressão da crise é lenta, dada a reação do Estado, mas é inexorável.

O FED tem socializado os prejuízos trocando títulos podres por títulos do tesouro com os bancos comerciais e de investimentos mais afetados, mas isso apenas impede que o pior aconteça o mais rápido. Ganham tempo, mas não solucionam. Há uma “estatização branca” de grande parte do sistema financeiro norte-americano, mas seu tamanho vem encolhendo.

Ao mesmo tempo, o consumo vem caindo (as vendas de automóveis estão nesse agosto cerca de 20% menores do que em agosto de 2007) e o desemprego aumentando (as médias de pedidos semanais de seguro-desemprego situam-se hoje em 440.000, contra cerca de 320.000 um ano antes, ou seja, praticamente uma elevação de praticamente 1/3 no volume de demissões).

Estima-se que a dívida pública aumente em US$ 1 trilhão de dólares em 2009, o que faz com que os futuros cortes de impostos sejam apenas promessas de campanha de Obama e McCain.
O problema não é apenas norte-americano.

A Europa tem apresentado queda abrupta em seu crescimento econômico, com os indicadores de atividade entrando em território negativo nesse segundo semestre de 2009. O mesmo ocorre com a economia japonesa. Há indícios de desaceleração econômica na China, embora as margens de manobra – possibilidades de intervenção do Estado – estejam presentes para esse país, crucial na determinação da escala geográfica e da intensidade do crescimento econômico mundial.

Os fluxos financeiros globais, pouco a pouco, começam a secar e os preços das matérias-primas, a fraquejar. O dinamismo econômico do período 2002-2007 dependeu do desempenho do duo EUA-China. Essa possibilidade está rompida para um futuro imediato. Será a China capaz de solitariamente dinamizar a economia mundial e com isso garantir a demanda – e a solvência – dos países da periferia da periferia (como o Brasil, por exemplo)?

Sem a internacionalização de sua moeda, processo impossível no curto prazo, uma estratégia desse tipo teria pernas muito curtas, embora essa seja uma das grandes questões que se apresentam para o futuro.

Em resumo, o fracasso do neoliberalismo é ideológico e econômico. A burguesia dos EUA busca os culpados pelo fracasso, e fala em “irresponsabilidade na construção de uma pirâmide insustentável de dívidas”. Ora, o que estamos esperando nós, socialistas, para dizermos, na cara deles, o que eles mesmos vêm afirmando?

A crise da hegemonia norte-americana e o retorno do Estado

A crise final do neoliberalismo trás consigo o espectro do final da hegemonia norte-americana. A questão é controversa, mas parece estar se formando um consenso de que também na geopolítica as mudanças são iminentes e inexeráveis, embora lentas.

A incompetência da administração W. Bush, que transformou o ataque às torres gêmeas em ódio mundial aos EUA, não pode ser minimizada para esse resultado. A derrota no Iraque e os esforços ali despendidos reduzem o medo de atuação de desafiantes em busca da consolidação de seu poder regional, como bem mostra o recente conflito entre a Rússia e a Geórgia, o qual teve seu desfecho independente do eventual apoio dos EUA aos georgianos.

Mas, temos mais: o desleixo norte-americano para com seus pares e sua crescente fraqueza econômica resultou na completa desorganização institucional das relações entre os países. A ONU e o G7 (ou G8), importantes para a “governança” hegemônica dos EUA nos anos 1980 e 1990, estão completamente sem autoridade e sem liderança, respectivamente.

A emergência da China e da globalização “global” trouxe resultados que colocaram em xeque a liderança inconteste dos EUA, ao oferecerem alternativas de escape face aos interesses patrocinados pelos norte-americanos. O aumento do preço do petróleo e a transferência da produção industrial para a China fizeram com que os principais credores dos Estados Unidos sejam seus inimigos potenciais (potências petrolíferas árabes, Venezuela, China e Rússia).

As exceções são a Coréia do Sul e o Japão, países que têm sido solicitados a colaborar, sem muito sucesso, com a injeção de recursos no combalido sistema financeiro norte-americano.

Essa crise de hegemonia geopolítica aliada à crise financeira coloca a questão quanto ao fim do ciclo de dominação inconteste do dólar, revigorado com a elevação dos juros em 1979. Os países credores – China e Japão, em particular –, têm utilizado seu potencial de desestabilização do dólar como forma de vetar certas decisões de política econômica dos EUA com uma audácia crescente e de forma cada vez menos velada.

O problema é que o dólar não possui rival à altura no atual sistema monetário internacional. Trata-se de um jogo no qual o dólar tem ganho por WO e que, em caso de uma contestação mais acirrada, pode resultar no fortalecimento de moedas com áreas de influência regionais, com fortes potenciais desestabilizadores para os fluxos de comércio e de investimentos multinacionais tais quais se apresentaram nas últimas três décadas.

Entretanto, temos que entender que a hegemonia dos EUA está enfraquecida, mas não acabada. E aqui reside um dos principais perigos da atual conjuntura: que reação tomarão os EUA frente à evidência cada vez mais clara do declínio de seu poderio? Adotarão uma postura negociadora (em que fórum?) ou procurarão desesperadamente retomar o poder inconteste do passado?

São questões que estão jogo nas próximas eleições norte-americanas, ainda que as propostas dos candidatos não sejam totalmente claras a esse respeito. Mas, o eleito deverá se confrontar inevitavelmente com essas questões. Uma pista dessa reação está presente nos recentes investimentos da marinha norte-americana, os quais incluem a reativação da IV Frota.

Em um mundo onde os recursos naturais e energéticos ganham importância, sendo essa uma das fraquezas da China, torna-se crucial controlar os mares e ganhar poder barganha sobre o fluxo de mercadorias. A ironia é que na tão decantada “era da informação e do conhecimento” o poder talvez ainda venha a tomar forma no antiquado controle do comércio marítimo.

Nesse texto, antes de apontar uma resultante precisa face a tantas incertezas envolvidas, busca-se sobretudo mostrar que as mudanças na economia e na geopolítica mundial já se encontram em processo e que o mundo não voltará a tomar a mesma forma que tinha nos anos 1990.

Apesar da complexidade do processo em curso, uma questão parece já ser possível de apontar com clareza: o Estado voltará a ter um papel proeminente e direto na regulação econômica e social. Os países desenvolvidos têm seus sistemas financeiros sendo parcialmente estatizados, os déficits fiscais serão crescentes, bem como os impostos.

Mas, o mais importante é o fracasso do neoliberalismo. Os membros da coletividade irão exigir dos governantes uma atuação de modo a que as fraudes e a ganância que marcaram a atual crise não se repitam, bem como a punição daqueles que possam ser considerados culpados, e os executivos da alta-finança internacional encontram-se dentre os principais candidatos ao papel.

A idéia de que o Estado é mais ineficiente do que a iniciativa privada será contraposta à dura realidade da crise causada pela incompetência privada e a falta de efetivo controle estatal.
Também não devemos esquecer a imagem de sucesso mundial que tem a economia chinesa – e que deve se multiplicar com o papel crucial que esse país terá de desempenhar para evitar uma catástrofe econômica de proporções inéditas –, imagem essa “mundializada” como nunca com o espetacular sucesso daquele país na recente organização das últimas Olimpíadas.

Apesar de nossas divergências evidentes com o modelo político chinês e sua falta de liberdade política, não devemos confundir as coisas: a presença do Estado na condução econômica e na sociedade chinesa é de natureza radicalmente oposta ao neoliberalismo que reinou nos EUA e no Brasil!

No imaginário social, isso abre uma oportunidade que a esquerda não tinha havia muitos anos: quando nos chamarem de comunistas ou estatistas (antigo sinônimo do antigo ou incompetente), basta contrapor o fracasso norte-americano ao sucesso chinês! Por que insistimos nós em deixar a exploração da imagem chinesa como exemplo do sucesso do capitalismo neoliberal, quando isso é radicalmente falso?

O liberalismo é a causa do fracasso do mundo desenvolvido e da apreciação do real que faz com que, aos poucos, estejamos reconstruindo uma formidável dívida externa enquanto “auxiliamos”, com nosso novo déficit exterior, os EUA a se recuperarem de sua crise.

Quem defender a causa do liberalismo nesse momento estará politicamente morto, se não imediatamente, em prazo muito curto. Esse é o momento de reafirmarmos que somos a favor da presença do Estado, que somos a favor da regulação forte, que somos a favor da intervenção forte e que somos a favor dos agentes do Estado, os funcionários públicos!

Uma pequena amostra do que está por vir quanto ao fortalecimento da presença do Estado: quem imaginaria, em um país como a Argentina, a reestatização das Aerolineas Argentinas depois do vendaval neoliberal que varreu aquele país no início dos anos 1990? E, mesmo em um país como o Brasil, quem imaginaria o fraco governo Lula discutindo a criação de uma estatal para gerir os potenciais recursos do petróleo pré-sal, tendo antes sido aventada a criação de uma “Biobrás” estatal para fortalecer as pesquisas com biocombustíveis?

Esses exemplos não são acaso e sim resultados do novo momento internacional, do fim do fundamentalismo de mercado, da falência econômica e ideológica do neoliberalismo. Obviamente, nesse novo contexto ideológico que se anuncia, a privatização desenfreada dos serviços de saúde, segurança e educação será posta em xeque.

Demorou, mas o mundo mudou. É nossa obrigação anunciar a boa nova. Afinal, por qual motivo deixaremos ventos tão favoráveis às nossas idéias servirem aos nossos inimigos? Por quê? Por falta de coragem, de audácia e de imaginação?

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